Sem votos no Parlamento para aprovar a sua versão do Brexit, a primeira-ministra britânica promete não vergar. Seis membros do governo abandonaram o Executivo esta quinta-feira

Texto Pedro Cordeiro

Theresa May mostrou esta tarde, uma vez mais, por que motivo ganhou a alcunha “Maybot” (por associação a robô) na imprensa britânica. Sem se desviar um milímetro do seu discurso sobre o Brexit, a primeira-ministra do Reino Unido afirmou à tarde que o povo só quer que o processo fique concluído e insistiu na defesa do acordo de princípio que alcançou esta quarta-feira com a UE, e que não deverá ter condições para ser aprovado no Parlamento. Comparando-se, após provocação de um repórter, com o jogador de críquete Geoffrey Boycott (May é fã da modalidade), recordou que este “ia sempre até ao fim”.

O acordo em cima da mesa é o único, diz May, que aplica o resultado do referendo de 23 de junho de 2016 sem criar uma fronteira física na ilha da Irlanda. “É uma negociação complexa”, repetiu várias vezes numa conferência de imprensa. “Não é fácil”, reconheceu. “Mas é do interesse nacional e vai proteger os seus interesses e garantir um excelente futuro ao país.” A governante conservadora desvalorizou a possibilidade de a sua chefia ser contestada internamente e não quis dizer o que fará se o acordo for chumbado pelos deputados.

May falava num dia aziago, em que perdeu seis membros do seu Governo. A jornada começara com o anúncio da demissão dos ministros da Saída da UE, Dominic Raab, e do Trabalho, Esther McVey. Ambos eurocéticos, rejeitam o pacto com Bruxelas, que mantém o Reino Unido em união aduaneira com a UE, violando promessas feitas pela primeira-ministra. Também abandonaram o Governo dois secretários de Estado (Suella Braverman, do Brexit; e Shailesh Vara, da Irlanda do Norte) e dois secretários parlamentares (Ranil Jayawardena, da Justiça, e Anne-Marie Trevelyan, da Educação).

Na Câmara dos Comuns, ao longo de três horas e dezenas de intervenções, sete deputados falaram a favor do plano de May, e alguns frisando tratar-se apenas do “mal menor”. Mesmo dentro do seu Partido Conservador houve mais vozes a criticá-la do que a prestar-lhe apoio, chegando alguns deputados a pedir que abandonasse a chefia do Executivo.

Acordo deve ser chumbado

Embora questionada diretamente várias vezes sobre o assunto, por deputados de manhã e pela comunicação social à tarde, a primeira-ministra recusou-se a dizer o que fará se o Parlamento chumbar o acordo, de momento o desfecho mais provável de uma votação prevista para o início do próximo mês. Apenas foi clara ao rejeitar um segundo referendo, a suspensão do artigo 50 do Tratado de Lisboa (que rege a saída da UE) ou o alargamento do período transitório, que deve durar até dezembro de 2020. O Reino Unido sairá da UE, reiterou, a 29 de março de 2019.

Reverter o Brexit num segundo referendo já não parece do foro do delírio <span class="creditofoto">Foto reuters</span>

Reverter o Brexit num segundo referendo já não parece do foro do delírio Foto reuters

A aritmética parlamentar não favorece May, como reconheceram inúmeros deputados. O mais assertivo foi o conservador Mark François, favorável à saída da UE, que frisou que a aprovação é “matematicamente impossível” e cifrou em 84 o número de conservadores dispostos a votar contra. A aprovação requer 320 votos a favor entre 650 (porque o presidente da Câmara dos Comuns e os seus três vices não votam e o partido republicano irlandês Sinn Féin não assume os seus sete lugares, para não ter de jurar lealdade à coroa).

Além dos dissidentes da sua bancada, May também não pode contar com o Partido Democrático Unionista norte-irlandês. Embora apoie o seu Governo (que não tem maioria), esta força política rejeita o pacto com Bruxelas porque cria condições diferentes, em termos comerciais e aduaneiros, entre a Irlanda do Norte e o resto do Reino Unido.

Há que somar aos “nãos” a maioria dos 257 deputados trabalhistas —há eurocéticos no partido de Jeremy Corbyn, mas a maioria deles critica May por ter cedido demasiado a Bruxelas —, os 35 nacionalistas escoceses, 11 dos 12 liberais, os quatro nacionalistas galeses e a única deputada verde.

May conta, pois, com três quartos da sua bancada e com deputados de outros partidos que avaliam que, apesar de tudo, é melhor aceitar este acordo do que sair da UE de forma abrupta ou, hipótese temida pelos mais eurocéticos, ficar de todo sem Brexit. May tem falado neste “risco” nos últimos dias, mas não acredita, reafirmou hoje, em tal desenlace.

Uma líder acossada

O deputado conservador Jacob Rees-Mogg, um dos maiores contestatários da integração europeia, insinuou no debate (e depois cumpriu) que iria escrever uma carta ao órgão partidário de que depende uma moção de censura interna a May. O chamado Comité 1922 é liderado pelo deputado Graham Brady, a quem cabe receber cartas a pedir a demissão da líder.

Caso tais cartas totalizem mais de 15% da bancada conservadora (15%), é desencadeada uma moção de censura interna, a submeter a todo o grupo parlamentar (316 deputados). Além de Rees-Mogg, outros deputados anunciaram nas redes sociais, ao longo do dia, terem escrito a Brady. Este nunca divulga quantas cartas tem, a menos que o limiar da moção de censura seja atingido.

Rees-Mogg afirmou que não quer candidatar-se ao lugar de May, tendo apontado como possíveis sucessores Boris Johnson ou David Davis, que se demitiram em julho (devido ao mesmo assunto, o Brexit) das pastas dos Negócios Estrangeiros e da Saída da UE, respetivamente. Outros putativos aspirantes tentam ganhar peso: o ministro do Ambiente, Michael Gove, terá sido convidado para assumir a pasta do Brexit, deixada por Raab, mas só aceitará se puder renegociar tudo com Bruxelas, anulando desde já a cimeira europeia marcada para 25 de novembro (Bruxelas considera, porém, que os negociadores já “esgotaram a margem de manobra” e, inquirida por jornalistas, May não quis confirmar se é ele a sua escolha); a ministra do Desenvolvimento Internacional, Penny Mordaunt, exige a Theresa May que dê liberdade de voto aos membros do Executivo, o que é raro, em relação ao acordo.

O que está em causa

O acordo de princípio entre Londres e Bruxelas, divulgado esta quarta-feira à noite, tem 585 páginas. Os principais assuntos que cobre são o acerto de contas entre o Reino Unido e a União Europeia; os direitos dos cidadãos; e a fronteira da Irlanda. Acrescem sete páginas sobre a futura relação bilateral, ainda por negociar, contendo declarações de intenções que só o futuro confirmará ou desmentirá.

Se o acordo foi fácil relativamente às contas (apesar de Boris Johnson inicialmente ter dito que o Reino Unido nada pagaria, o país acaba a desembolsar mais de 40 mil milhões de euros relativos a compromissos previamente assumidos com a UE) e aos direitos dos cidadãos (haverá reciprocidade para britânicos em território comunitário e cidadãos europeus no Reino Unido), em relação à Irlanda do Norte não foi assim.

<span class="creditofoto">Sabine Weyand foi das principais responsáveis pelas cedências que Bruxelas arrancou a Londres Foto Reuters</span>

Sabine Weyand foi das principais responsáveis pelas cedências que Bruxelas arrancou a Londres Foto Reuters

A fronteira entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte será, após o Brexit, a única fronteira terrestre entre a União Europeia e o Reino Unido. Hoje ela é invisível, isto é, livremente atravessada, uma conquista importante após décadas de confrontos e mortes na Irlanda devido ao conflito entre protestantes (unionistas) e católicos (defensores da unificação com a República). Há 20 anos o Acordo de Belfast (ou de Sexta-feira Santa) selava a paz.

Londres e Bruxelas prometem que o acordo comercial futuro regerá essa fronteira e evitará qualquer infraestrutura física na fronteira. Mas esse acordo ainda nem começou a ser negociado, pelo que o pacto agora em cima da mesa prevê uma solução de recurso, o chamado “backstop”. Este entrará em vigor se as novas regras não forem fixadas até ao fim do período transitório do Brexit (31 de dezembro de 2020).

Nesse caso, diz o documento, o Reino Unido permanecerá, para efeitos práticos, em alinhamento regulatório e aduaneiro com os 27 até que haja o tal novo acordo comercial. Londres queria poder abandonar o backstop unilateralmente, a qualquer momento, mas o acordo de May estipula que tal só pode suceder por acordo mútuo. Isto é, a UE pode manter o Reino Unido “preso” às regras da união aduaneira e a Irlanda do Norte (também ao abrigo do acordo) sujeito aos requisitos do mercado único. A primeira-ministra explicou, esta tarde, que “não foi uma decisão fácil e levou a um debate apaixonado no conselho de ministros”.

O período transitório também pode ser prolongado por vontade de ambas as partes, mas nesse caso a fatura do divórcio também cresce, à razão de 13 mil milhões de libras (15 mil milhões de euros) por ano, calcula “The Daily Telegraph”.

Para os mais ferozes adeptos do ‘Brexit’, é um pesadelo: deixar de ter voz na UE — o país deixaria de participar em cimeiras e de ter 73 assentos no Parlamento Europeu — mas continuar sujeito a algumas das suas regras. “Devem alinhar pelas regras mas a UE manterá o controlo”, lê-se num memorando da vice-chefe dos negociadores europeus, Sabine Weyand, divulgada pela imprensa. Os eurocéticos britânicos receiam uma “prisão perpétua”, enquando o DUP rejeita o tratamento diferenciado para a Irlanda do Norte.

Para os mais acérrimos partidários do Brexit, o acordo planeado tem outros problemas. Vincula o Reino Unido à legislação europeia sobre ajudas estatais e concorrência, impedindo o país de baixar exigências regulatórias em política laboral, fiscal e ambiental. E, contra as promessas de fim da jurisdição do Tribunal Europeu de Justiça, obriga Londres a sujeitar-se a este para assuntos que envolvam direito comunitário e a ter em conta a sua jurisprudência.

Futuro imediato

A Câmara dos Comuns deve votar no início de dezembro, na sequência da cimeira europeia de 25 de novembro. Se o acordo passar, inicia-se o processo de ratificação pelos 27 Estados-membros que ficam na UE. Caso seja chumbado, é altamente improvável que a liderança de May possa sobreviver, mas o que se passará sem seguida é uma incógnita.

Não é necessário que o Governo caia. A lei britânica prevê legislaturas fixas de cinco anos, revogáveis apenas por votação de dois terços dos deputados. Pode, pois, acontecer uma mudança de líder do Partido Conservador e do Executivo sem passar pelas urnas.

Em alternativa, o país pode mesmo ir a votos, com o que isso tem de imprevisível. Crescem as vozes, e hoje foram ouvidas na sessão parlamentar em Westminster, a favor de um segundo referendo sobre o Brexit. Uma sondagem divulgada hoje pela Sky indica que 55% dos inquiridos apoiariam nova consulta popular para escolherem entre o acordo de May, uma saída sem acordo ou ficar na UE; 35% estariam contra. Outro estudo de opinião, este do instituto YouGov, demonstra a impopularidade da proposta da primeira-ministra. Apenas 19% se pronunciam a favor do plano, 42% contra e 39% não sabem.