Rússia

“A guerra híbrida é para continuar”. A análise às ameaças de “ações simétricas e assimétricas” de Putin

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Não está aí uma nova Guerra Fria, mas... Analistas ouvidos pelo Expresso veem na alocução ao país feita esta quarta-feira pelo Presidente russo, Vladimir Putin, um discurso ambíguo para o Ocidente ouvir e uma demonstração armada sobretudo para russo ver

Texto Hélder Gomes

“Há já algum tempo que ultrapassámos a fronteira retórica de uma nova Guerra Fria mas não deixa de ser interessante que Vladimir Putin compare os novos mísseis com os maiores avanços da tecnologia soviética”, nota ao Expresso a investigadora Maria Brock, da Universidade de Cardiff, no País de Gales. Comentando o discurso proferido esta quarta-feira pelo Presidente da Rússia, a académica deteta “uma certa nostalgia do império”, numa altura em que a popularidade de Putin atinge mínimos históricos.

A alocução anual no Parlamento, o equivalente russo aos discursos do Estado da Nação, centrou-se em grande parte na economia, com promessas de aumento do investimento público, redução de impostos para as famílias e melhoria das condições de vida. No entanto, foram as ameaças à Europa e aos EUA que mereceram maior destaque na imprensa internacional. Putin prometeu que Moscovo irá desenvolver novas armas e apontá-las aos “centros de decisão” ocidentais se estes instalarem novos mísseis de curto e médio alcance no continente europeu.

A ameaça surge após o anúncio da retirada dos Estados Unidos – e, mais tarde, da Rússia – do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermédio, assinado em 1987 pelo então Presidente norte-americano, Ronald Reagan, e pelo último líder soviético, Mikhail Gorbachev.

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O tratado proíbe a produção, teste e implantação de mísseis balísticos e de cruzeiro com um alcance entre 500 e 5500 quilómetros. Alinhado com o atual inquilino da Casa Branca, Donald Trump, o conselheiro de segurança nacional dos EUA, John Bolton, suspendeu o tratado, alegando que Moscovo desenvolveu secretamente um míssil que viola o acordo. O Kremlin nega essas alegações.

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DISCURSO ENTRE O “INCOMPREENSÍVEL” E O “DETERMINADO”

Considerando que a implantação de mísseis capazes de atingir Moscovo em 10 minutos é “perigosa para a Rússia”, Putin afirmou que seria obrigado a rever “ações simétricas e assimétricas”. “A Rússia será forçada a criar e implantar armas que podem ser usadas não apenas contra os territórios de onde a ameaça direta vem, mas também aqueles onde as decisões para utilizar esses sistemas de mísseis são tomadas”, sublinhou.

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Putin revelou pormenores sobre os projetos de construção de armas em curso, incluindo o míssil hipersónico Tsirkon, que poderá viajar até 1000 quilómetros e atingir alvos terrestres. Simultaneamente, reafirmou o compromisso de não instalar mísseis de curto e médio alcance na parte ocidental da Rússia, a menos que armas semelhantes sejam instaladas na Europa.

“Por um lado, diz que está aberto ao diálogo entre pares e que deseja a paz. Por outro, faz ameaças declaradas – ‘se for preciso, retaliamos e não temos medo’ –, o que se combina de uma forma estranha com o elogio dos avanços da tecnologia militar russa”, avalia Maria Brock. “O tom do discurso no capítulo da geopolítica varia entre o incompreensível (quando fala de ‘acusações infundadas’ e ‘ameaças constantes’) e o determinado (ao prometer fazer tudo para preservar a soberania da Rússia e salvar a sua civilização)”, sintetiza a investigadora de Cardiff.

AS ARMAS DO APOCALIPSE E A GUERRA HÍBRIDA

O historiador e investigador Arto Luukkanen, que leciona cursos de Estudos Russos e do Leste Europeu na Universidade de Helsínquia, na Finlândia, começa por destacar “a mensagem muito social” presente no discurso. “Putin quer mostrar que está preocupado com o futuro da Rússia e o seu povo. É uma forma de dizer às pessoas: ‘ainda estou aqui e vou ficar mais forte’”, sugere ao Expresso.

Numa mensagem de Putin que Luukkanen considera “maioritariamente dirigida aos russos” e, portanto, para consumo doméstico, o académico também destaca a nova corrida às armas que se prenuncia. “Ele mostrou os novos sistemas de armamento, as chamadas ‘armas do apocalipse’ capazes de destruir um continente. Ameaçou que retaliaria, o que significa que vai criar mais exércitos, divisões e armas, enquanto prossegue a guerra híbrida com o Ocidente”, sublinha.

A guerra híbrida mistura táticas de guerra convencional com a ciberguerra, caracterizada por métodos como ataques informáticos, produção e disseminação de notícias falsas e ingerência externa em eleições

A “NOVA CONSTELAÇÃO GEOPOLÍTICA CONTRA O OCIDENTE”

No fundo, Putin prometeu que continuará a causar impacto nas sociedades ocidentais a um nível ‘soft’, ou seja, pelo poder de persuasão, sintetiza. Luukkanen dá como exemplos desta abordagem o caso de Sergei Skripal, o agente duplo envenenado no Reino Unido juntamente com a sua filha, e a guerra cibernética contra o Ocidente que tenta influenciar eleições em vários países. “E depois há uma nova constelação geopolítica formada pela Rússia, China, Turquia e Irão, que cooperam cada vez mais entre si – contra o Ocidente, naturalmente”, conclui.

A grande cooperação entre a Rússia e a China também não escapou à análise de Maria Brock, servindo para “esfregar na cara dos EUA que os dois países formam um bloco poderoso”. A nível interno, “parece ter havido este ano menos aplausos entre a audiência, especialmente quando Putin falou dos mísseis”, refere a investigadora. “Tenho a impressão de que os russos estão um bocado cansados da conversa nacionalista extrema, mas posso estar errada. E há, sem dúvida, muitos nacionalistas no Governo”, diz, antes de rematar: “As condições de vida parecem ser a maior preocupação de todos”.