Antes pelo contrário

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

Marcelo é capa de livro infantil e isso é bom para a democracia

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Nas vésperas de Natal, numa livraria, dei de caras com um livro infantil inusitado. O título: “Marcelo, o Presidente”. É de Joana M. Lopes e Rita Martins, foi editado pela Alêtheia Editores e parece que saiu no verão. Na capa, um desenho de Marcelo Rebelo de Sousa a tirar uma selfie com um grupo de crianças de várias etnias. Toda esta capa – não li o livro, que é sobre a vida do Presidente – é merecedora de um estudo de ciência política. Se vivêssemos numa ditadura, poderia dizer-se que era um ato de propaganda. Se suspeitássemos que, em democracia, isto correspondia à tentativa de criar uma figura salvífica, também. Mas a sensação que tenho é que estamos perante um gesto genuíno que responde, se quiserem, ao gosto do mercado. Marcelo Rebelo de Sousa é uma figura pop.

Se olharmos com atenção para o mundo e para o país, esta normalização popular de Marcelo vai em completo contraciclo. Há uma razão fácil para o explicar: o Presidente da República não decide, em Portugal, nada. O que quer dizer o que sempre soubemos: as pessoas tendem a gostar mais de figuras simbólicas sem poder do que de decisores que têm de fazer escolhas. Mas isto não chega. Cavaco e Sampaio também foram Presidentes e nunca tiveram esta popularidade. Na realidade, o único político português que se aproximou disto foi Mário Soares, quando era Presidente. E não preciso de recordar como esse unanimismo acabou por desaparecer, sem nunca se ter percebido bem a razão. A ponto de o seu passado longínquo, irrelevante na sua reeleição de 1991, se ter tornado mais importante do que o seu passado próximo, na hora da sua morte.

Marcelo Rebelo de Sousa é popular porque conseguiu aproximar-se da dessacralização do poder que marca o nosso tempo. Até conseguiu simular o fim da mediação, ignorando o protocolo e tornando o seu mandato numa exibição quase permanente de emoções. Isto tem riscos que devem ser sublinhados: a sua popularidade não corresponde a uma popularidade do cargo ou da democracia. Não é transferível. E o seu estilo pode vir a ser usado para objetivos opostos. Donald Trump usa esta banalização do poder para o insulto, o atropelo das regras, a transformação do formalismo democrático num informalismo carismático. E todos sabemos como isso é perigoso.

Políticos carismáticos são excelentes para impor ditaduras mas também são excelentes para defender democracias. Marcelo na capa de um livro infantil, retratado como um tipo porreiro que tira selfies, pode tornar a democracia mais compreensível para um povo desalentado

Marcelo diz em sua defesa que a sua popularidade é o que permite não ceder ao populismo. Não é mal pensado e a verdade é que o discurso de Ano Novo mostra como é o inverso de Trump e Bolsonaro. Tem o problema de favorecer um tipo de políticos que raramente respeitam as regras democráticas como Marcelo respeita. Tem o problema de funcionar bem com um Presidente sem funções executivas e ser quase impossível num primeiro-ministro. Mas é uma boa pista para uma das estratégias (não a única ou a mais importante) para defender a democracia: a sensação de proximidade pode contribuir para atenuar a sensação de alienação democrática em que as pessoas vivem. Políticos carismáticos são excelentes para impor ditaduras mas também são excelentes para defender democracias.

Ver Marcelo Rebelo de Sousa na capa de um livro infantil, retratado como um tipo porreiro que tira selfies, banaliza o poder democrático. E isso tem muitos perigos. Mas essa banalização pode tornar a democracia mais compreensível para um povo desalentado. Isto está tão difícil que se as selfies ajudam são bem-vindas.