A Poética da Ética

A Poética da Ética

Rute Serra

Ajuste não tão direto, s.f.f.

O Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF) promove neste espaço semanal uma reflexão sobre as temáticas da fraude, da corrupção, da economia não-registada, da ética, da integridade e da transparência, contribuindo deste modo para a formação de uma opinião pública mais esclarecida e mais participativa

Operação Teia, Operação Rota Final, Operação Éter … O ano de 2019 tem sido fértil em investigações criminais direcionadas ao combate à denominada “criminalidade administrativa” a envolver responsáveis autárquicos e violações aos procedimentos de contratação pública.

Esta área de negócio do Estado tem, em Portugal, um impacto socioeconómico significativo. Cerca de 50% dos fundos estruturais da União Europeia (UE) recebidos pelo país são gastos através de processos de contratação pública, representando quase 20% de toda a despesa pública, ou seja, o equivalente a 10% do PIB português.

Da consulta aos dados disponíveis no Portal BASE.GOV constata-se que entre agosto e setembro de 2019 (últimos dados disponibilizados), mantém-se a tendência de quase metade do total das adjudicações públicas em Portugal serem realizadas através de ajuste direto. E com o aproximar do fim do ano fiscal, não se augura probabilidade de inversão. Para melhor esclarecimento, atente-se no quadro abaixo:

<span class="creditofoto">Fonte: Síntese Mensal da Contratação Pública/Setembro de 2019 Portal BASE.GOV</span>

Fonte: Síntese Mensal da Contratação Pública/Setembro de 2019 Portal BASE.GOV

Apesar dos sucessivos alertas da entidade com responsabilidade na prevenção de riscos de corrupção no sector público, ou de outras com competências quer de fiscalização quer sancionatórias, questiona-se a sua efetiva ressonância. Valores como a transparência, a legalidade e a defesa da sã concorrência, desígnios relevantes no Código dos Contratos Públicos (CCP), nas Diretivas Europeias sobre contratação pública e a outros países civilizados, apenas planam sobre a genuína intenção, porém com correspondência prática sofrível, na realidade administrativa portuguesa.

A importância da diminuição do recurso ao ajuste direto na contratação pública é óbvia e visa, em primeira linha, salvaguardar a prossecução do interesse público: evitando-se a discricionariedade da escolha pública, mitiga-se a distorção da concorrência, prevenindo-se a probabilidade de ocorrência de fenómenos de corrupção.

Por outro lado, é sabido que, em larga medida, o insistente recurso a este tipo de procedimento prende-se com a ineficácia e a ineficiência da gestão, nomeadamente ao nível do planeamento. Não será, por outro lado, despiciendo considerar que o investimento na especialização dos profissionais, exigível face à complexa estrutura deste tipo de procedimentos, não tem sido propriamente uma prioridade. E nem se pense, assim sendo, que será a existência de um gestor do contrato (conforme previsto no art.º 290º-A do CCP) que contribuirá significativamente para evitar a integridade dos procedimentos.

No fim do dia, a verdade é que o saldo é pernicioso – mais de metade da população portuguesa (55%), de acordo com os dados do último Eurobarómetro especial sobre a corrupção, de outubro de 2017, considera que os funcionários públicos que adjudicam concursos públicos são corruptíveis (acima dos 43% da média europeia).

Em dezembro de 2017, Portugal aderiu à iniciativa Open Government Partnership, tendo apresentado um plano de ação para 2018-2020 centrado em oito compromissos.

No final de outubro deste ano, foi publicado o primeiro Relatório do Mecanismo Independente de Avaliação daquele Plano, da responsabilidade de um investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

E o alerta surge precisamente no que diz respeito à necessidade de reforço da transparência nesta área da contratação pública. Sobre este compromisso, o oitavo, recomenda-se a implementação de uma Application Programming Interface (API), ou seja, de um instrumento capaz de garantir a transparência e a qualidade dos sistemas de e-procurement em cada etapa do ciclo de compras públicas, como seja – acrescentamos nós – a Open Contracting Data Standard (OCDS). Esta ferramenta foi desenvolvida pela World Wide Web Foundation e compromete-se a tornar mais transparentes os dados relativos à contratação pública, engajando eficazmente governos, administração pública e sociedade civil, sendo já utilizada em países como o Canadá, o Reino Unido ou a Austrália.

Outro enfoque das conclusões daquele Relatório surge relativamente à necessidade de implementação de mecanismos de participação cívica, em especial nas fases iniciais dos procedimentos de contratação pública.

E a este propósito, cumpre recordar Miguel Torga, no seu “Diário XIV”, quando dizia: “É um fenómeno curioso: o país ergue-se indignado, moureja o dia todo indignado, come e bebe e diverte-se indignado, mas não passa disso. Falta-lhe o romantismo cívico da agressão. Somos, socialmente, uma coletividade pacífica de revoltados.”

Também este velho fado urge contrariar.