Chamem-me o que quiserem

Chamem-me o que quiserem

Henrique Monteiro

A ponte, os fogos, a estrada

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Há uma coisa em que nós, portugueses, somos imbatíveis: sabemos sempre o que deveria ter sido feito para não acontecerem tragédias. Infelizmente, por uma qualquer maldição, as tragédias acontecem antes de aplicarmos o que tão bem sabíamos que deveria ter sido feito.

Há outra coisa que em que, nós portugueses, somos especialistas: nunca deixamos a culpa morrer solteira. Mas, no geral, ela morre sempre muito mal-acompanhada.

A queda da ponte de Entre-os-Rios que levou à demissão de um ministro tão popular, ainda hoje, como Jorge Coelho, acabou por ficar a dever-se a uns técnicos de segunda ordem. Os fogos de 2005, do ano passado, de quando fosse, ainda andam à procura de marido ou mulher para se saber com quem casa a culpa. Finalmente, a estrada de Borba tem 45 dias para se casar, determinou o Governo, a menos que a culpa, ao contrário do que já foi mais ou menos determinado, não seja da ganância das pedreiras e da incúria de poderes locais.

Vários analistas, cronistas e editorialistas debruçaram-se sobre a espécie de dualismo entre o país da Expo-98 e da ponte de Entre-os-Rios ou o país da WebSummit e da estrada de Borba. Têm razão. Há, de facto, uma fachada de verniz fino que raspando nos dá um retrato bem mais repelente. Porém, lamento pensar que isso não é problema só nosso. Na Catalunha houve uma derrocada de terras, há dois dias, que fez descarrilar um comboio. Só houve um morto, mas a tragédia (todos o reconhecem) podia ter sido muito maior. Ora, não consta que haja técnicos, autarcas e nem um só membro de qualquer Governo português de 1640 a ter interferência na Catalunha. Na Califórnia, os fogos deixam rasto de milhares de desaparecidos e dezenas de mortos. E não há bombeiros portugueses, SIRESP, autarcas ou mesmo Proteção Civil. Em Génova, na Itália rica, caiu um viaduto em plena zona industrial e não me consta que Jorge Coelho andasse por lá, nem qualquer técnico português…

Jamais conseguiremos prever todos os cataclismos, todos os acidentes, todas as derrocadas, todos os fenómenos provocados pelo clima, pelo uso e abuso do homem, por tantos e tão diversos motivos

Quero com isto dizer uma coisa chocantemente simples: as coisas acontecem, é certo que por incúria e por outros motivos pouco nobres, mas acontecem. Jamais viveremos num mundo assepticamente seguro no qual nada de arriscado existe; jamais conseguiremos prever todos os cataclismos, todos os acidentes, todas as derrocadas, todos os fenómenos provocados pelo clima, pelo uso e abuso do homem, por tantos e tão diversos motivos.

Por isso, se me permitem, direi que além do desgosto de ver vidas perdidas em acidentes estúpidos e evitáveis (que, insisto, continuarão a existir) irrita-me sobremaneira a ideia de que tem de haver um culpado preciso, teria de haver uma medida. Voltemos à estrada de Borba – sabem que há anos andavam a dizer que aquilo havia de acontecer? Pois, entre Sabrosa e o Pinhão também há uma estrada cuja instabilidade já foi denunciada. Nalgumas praias do Algarve, cheias de avisos contra derrocadas, famílias inteiras continuam a colocar-se à sombra das pedras instáveis. A vida é terrível… passados uns tempos sobre o abanão coletivo de uma tragédia, voltamos ao mesmo.

Lembram-se do choque de Aylan, o menino migrante curdo de três anos encontrado numa praia da Turquia? Não prometemos todos que a imigração não podia provocar desastres daqueles? Pois é, já passaram mais de três anos… e as coisas pioraram. Aqui, sim, já podíamos ter aprendido. Como em relação à família de Sabrosa que estupidamente faleceu por não ter dinheiro para a eletricidade. E registe-se que a Borba já foram inúmeros políticos de Lisboa. Ao funeral da família nem um, que eu saiba.