Chamem-me o que quiserem

Chamem-me o que quiserem

Henrique Monteiro

Como defender isto e o contrário

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Basta olhar em volta para nos apercebermos de uma sociedade completamente alheada da realidade, cujos protagonistas podem defender uma coisa e o seu contrário sem que ninguém, ou quase, os chame a atenção. Pelo contrário, a maioria aplaude!

Comecemos pela greve dos camionistas de matérias perigosas. O espaço divide-se entre os que acham que o Governo exagerou nos requisitos dos serviços mínimos e na chamada das Forças Armadas (entre os quais me encontro, tendo o histórico da UGT Torres Couto defendido isso mesmo) e os que acham que o Governo fez muito bem (entre os quais estão Alexandre Relvas, ‘o Mourinho’ de Cavaco Silva na sua candidatura presidencial). É curioso ver como patrões (a quem o Governo descaradamente se aliou) defendem a interpretação restritiva da greve. É impressionante como há quem pretenda que nada disto tem implicações futuras, em próximas greves, com este ou outro Governo, ou que resuma tudo a um mero desafio de futebol, anunciando vencedores e vencidos (Marques Mendes e o próprio António Costa, a quem Louçã respondeu aqui no Expresso com um texto muito oportuno – “Afinal era só bola”. É curioso o realinhamento de forças. Mas mais curioso ainda é verificar como há tanta gente que não vê mais do que o imediato. Como se pretende que os atos e as ideias não têm consequências.

O mesmo Governo que se bate por 35 horas na Função Pública, admite 60 horas nos camionistas. É normal? O Governo que tem o apoio de Mariana ‘é preciso ir buscar o dinheiro onde ele existe’, não se comove com um aumento de 50 euros para os motoristas, que iria diminuir as margens das grandes empresas petrolíferas. Mas isso também parece normal.

Aqueles que estariam dispostos a ir para a rua indignados se estas medidas (ou metade delas que fossem) tivessem sido tomadas por Passos Coelho, aplaudem a determinação de Costa. Normalíssimo, porque, para tanta gente, o mal existe em quem pratica a ação e não na ação em si, razão que permite à esquerda fazer o que a direita jamais se atreveria (mas vai atrever, depois disto).

Nada é seriamente questionado e quem o faz é intolerantemente tratado pelos atuais apparatchiks nas redes sociais

Segundo nos informa Luís Aguiar-Conraria (esta quarta-feira no “Público”), entre 2004 e 2017 (cinco anos de PSD e oito de PS) o “peso do rendimento do trabalho no rendimento total de Portugal caiu de 66 para 55%”. Ou seja, menos 11%, dos quais 6% em Governos do PS e cinco durante os anos da troika. O economista cita um estudo de julho deste ano publicado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e explica de forma muito precisa como isto acontece. Vejamos quem perderia com os aumentos aos motoristas de matérias perigosas: as empresas de camionagem? Dificilmente, pois já têm margens pequenas. Provavelmente, refletiriam esse aumento a quem prestam serviço, ou seja, às empresas petrolíferas que dependem do seu transporte. Na verdade, por trás da Antram (neste aspeto) estão os verdadeiros ‘donos disto tudo’. E se, neste caso, o Governo fez tudo para manter a ‘normalidade’, é curioso que não tenha feito um décimo em greves como a de transportes que impedem trabalhadores, muitos deles precários e em risco de perder o emprego, de ir para o trabalho (recordem-se as paralisações da Softlusa ou de comboios suburbanos).

Enfim, nada é seriamente questionado e quem o faz – como António Barreto, no último domingo, no “Público”, ao dizer que o PS está a perder a sua veia tolerante e a sua marca democrática – é intolerantemente tratado pelos atuais apparatchiks nas redes sociais.

Haveria mais exemplos: o mesmo ministro que disse que os carros a gasóleo deviam acabar, achou imprescindível haver gasóleo para todos durante a greve. As emissões de CO2 deixaram de ser um tema; o apelo aos transportes públicos quase não existiu. Do mesmo modo, os fatalistas das alterações climáticas, os animalistas e vegans, assim como os militantes contra organismos geneticamente modificados (OGM) deviam-se congratular por haver cartazes que nos dão os parabéns (a nós portugueses) por diminuirmos a natalidade. É que, na linha do que defendem, convém mesmo sermos menos pessoas no planeta. Mas, claro, a verdade, quando é dita nua e crua, seja através de ideias, seja por via dos números, como os da OIT, nem sempre convêm. Por isso, no último sábado uma das recomendações que fiz foi o do velho livro de Orwell “1984”, que nos explica o que é o ‘duplipensar’ e como nos podemos habituar a defender uma coisa e o seu contrário sem reparar que existe o mínimo conflito entre elas.