Chamem-me o que quiserem

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Henrique Monteiro

Ursula: a surpresa da normalidade

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Andámos uns dias entretidos com a possibilidade de grandes cargos europeus para António Costa; depois com a possibilidade de Costa ser um ‘kingmaker’ na Europa, ou seja, aquele que determina quem será o chefe; por último, com a ideia de que, também na Europa, seria possível uma geringonça que afastasse o partido mais votado. Finalmente, e depois de alertados por gente experiente para as falácias e erros que todas as hipóteses anteriores comportavam (Francisco Assis, Paulo Rangel, Poiares Maduro), venceu a normalidade. Uma excelente normalidade.

É verdade que Ursula von der Leyen não era candidata, não debateu linhas nem estratégias para a Comissão Europeia, nem foi a primeira (nem a segunda) hipótese. E se é possível que se torne uma espécie de Jacques Santer (que não deixou saudades), nada o indica. O seu discurso, esta terça-feira, no Parlamento Europeu foi excelente.

Ursula é alemã, médica, mãe de sete filhos, nascida em Bruxelas (Ixelles), onde o seu pai era funcionário dos primórdios da CEE. Fala fluentemente alemão, francês e inglês (além de holandês/flamengo, presumo) e sabe o que quer. Do seu programa, com muitas piscadelas de olho aos verdes, aos liberais e aos socialistas (que resultaram no caso dos últimos), traçou barreiras claras em relação aos nacionalistas. Podem dizer que Orban mandou votar nela, mas Ursula não pôde ser mais explícita quando afirmou “no mar, há o dever de salvar vidas”, frase que, infelizmente, nos nossos tempos passou de evidência a posição política. Foi tão dura com Farrage (do Partido do Brexit), quanto elegante e tática com a prevista saída do Reino Unido. Defendeu uma agenda de paridade homem/mulher nos cargos europeus, de modo racional e sem as habituais bengalas politicamente corretas; defendeu a neutralidade do carbono para 2050 (ano em que será demasiado velha, 92 anos para alguém lhe pedir responsabilidades) e, acima de tudo, não teve dúvidas nem pruridos em afirmar que a defesa da Europa passa pela NATO. Depois de tudo o que ouvi, votaria nela sem hesitação. Foi o que fizeram, aliás, os deputados portugueses do PS, PSD e CDS (ao contrário dos do PAN, BE e PCP, numa espécie de espelho da caseira geringonça), o que já levou Rui Tavares a considerar a posição do PS, bem como a do PSOE que foi igual, como uma traição.

Ursula conseguiu os votos do PS, PSD e CDS e teve contra BE, PCP e PAN, numa espécie de espelho da caseira geringonça

Ursula é, portanto, europeia de nascença; como ela disse, foi “europeia antes de ser alemã”, o que no seu caso é mesmo verdade.

O Parlamento Europeu, embora por poucos votos (oito), acabou por lhe dar maioria absoluta e penso ter sido o melhor que fez. As alternativas poderiam ser muito interessantes e teoricamente possíveis, mas com Ursula consegue-se que o partido que venceu tenha a presidência da Comissão; que haja um acordo envolvendo liberais e socialistas; que haja uma posição sensata e humanista em relação à imigração; que a defesa da política de Draghi no BCE e a defesa do euro continuem (através da francesa Christine Lagarde, que já se comprometeu com ela); que haja flexibilidade nas discussões com o Reino Unido; que às arremetidas de Trump se responda com tino e não com fanfarronices; que continue uma transição suave com vista a mais democracia e mais representatividade na União Europeia, além de mais integração sem quebra da diversidade.

A este propósito da diversidade, bastaria ver a votação de terça-feira para a detetarmos. Gente de todas as etnias, vestidas de formas que iam do ‘ultraformal’ ao ‘estilo campista’, temos representantes. Até para o mau-gosto piroso, como Berlusconni, que com a mão direita entrapada fazia questão de distribuir sorrisos e apertos de mão (com a esquerda).