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“Não temos direito a nada, somos os empregados de sonho de qualquer patrão”. Estivadores precários de Setúbal

Em Setúbal fazia-se greve ao trabalho extraordinário. Agora, os estivadores precários estão indisponíveis a tempo inteiro <span class="creditofoto">Foto André Areias/ Lusa </span>

Em Setúbal fazia-se greve ao trabalho extraordinário. Agora, os estivadores precários estão indisponíveis a tempo inteiro Foto André Areias/ Lusa

Não é uma greve, mas os estivadores em regime de precariedade estão indisponíveis para trabalhar em Setúbal. Os navios têm de ser desviados para outros portos e a Autoeuropa tem um problema nas mãos e fica com 9 mil automóveis em terra até ao final da semana, estando já está a estacionar carros acabados de produzir no perímetro da base aérea do Montijo. A economia pode tremer

Texto Margarida Cardoso e Vítor Andrade

“Tenho 9 anos de trabalho precário no Porto de Setúbal e agora queriam que eu assinasse um contrato. Eu recusei porque não posso olhar apenas para o meu umbigo. Pensavam que podiam dividir para reinar, mas enganaram-se. Somos um grupo muito unido”. Fernando Dores resume desta forma o conflito laboral que está a paralisar o Porto de Setúbal e ameaça travar as exportações da Autoeuropa.

Tem 47 anos. Viveu os últimos anos como estivador, numa situação de “precariedade total”, mas a trabalhar muito. “Boa parte dos dias do ano faço dois turnos seguidos, das 8h às 17h e das 17h à 01h. Às vezes são 3 turnos, por isso ainda fico lá da 1h às 8h. E no dia a seguir, volto a entrar às 17h”, conta ao Expresso este trabalhador.

Desde 5 de novembro, Fernando e os colegas juntaram forças num braço de ferro que paralisou o porto. Ninguém gritou, ainda, a frase “estivadores unidos jamais serão vencidos”, mas é isso que os junta na decisão de recusar as ofertas diárias de trabalho.

São 90 precários para 10 efetivos.Por isso, esta indisponibilidade geral para o trabalho paralisou o porto sadino e ameaça deixar a economia nacional à beira de um ataque de nervos, uma vez que a fábrica da Autoeuropa, em Palmela, o maior exportador nacional, tem já 6 mil carros parados à espera de embarcar.

Na prática, estes trabalhadores não estão em greve. Estão apenas indisponíveis para trabalhar. Porquê? Aparentemente porque a empresa que os contrata queria transformar a situação de precariedade de 30, oferecendo-lhes um vínculo laboral.

E as condições do contrato eram satisfatórias? “Não faço ideia, nem olhei para os papéis”, conta Fernando, decidido a continuar a luta apesar de isso significar que não receberá um cêntimo no final do mês.

Por ali, todos dizem que apenas dois colegas terão aceitado assinar o contrato, mas “um está de baixa e o outro nunca mais apareceu”. E os contemplados com propostas de vínculo laboral queixam-se de “coação”. Fernando confirma que se sentiu alvo de coação. Porquê? Deram-lhe uma semana para assinar o contrato e, findo esse prazo, recebeu nova proposta, em carta registada, justifica.

Num comentário no facebook, o seu colega Jorge Brito, com sete anos de precariedade no Porto de Setúbal no currículo, afirma que a decisão de parar é dos trabalhadores precários, sem filiação sindical, sem direitos, mas também sem obrigações para com a empresa que os contrata.

“Nós temos estivadores no nosso porto que têm vinte e dois anos de precariedade, temos outros com 15, 16, a média é uns 15 anos, e nunca muda. Não temos direito à baixa, não temos direito a férias, não temos direito a nada, somos os empregados de sonho de qualquer patrão. Quero dizer aos senhores deputados se gostavam de viver vinte anos sem poder comprar uma casa… porque é que deixam manter esta precariedade? Todos em Setúbal vamos lutar até ao fim, até não haver um precário!”, garante Jorge Brito.

Do outro lado estão os turcos

Do outro lado do braço de ferro, o Expresso não conseguiu obter qualquer explicação sobre o conflito laboral. Fonte da Operestiva, empresa de trabalho portuário que está no centro do conflito, disse apenas que os 30 contratos eram “uma primeira tentativa para resolver o problema do trabalho precário em Setúbal”, mas remeteu mais explicações para a Sadoport – Terminal Multiusos do Porto de Setúbal, responsável pela operação do Porto. Aí, disseram apenas que a questão tinha de ser tratada com a Ylport, a empresa de capital turco que domina a movimentação de contentores nos portos nacionais à exceção de Sines depois da compra da Tertir ao grupo Mota-Engil, em 2016. Mas o mail enviado pelo Expresso para o contacto dado nesta empresa ficou sem resposta até ao fecho deste artigo.

A Administração do Porto de Setúbal e Sesimbra (APSS), que também tem o Porto de Lisboa, “está a acompanhar atentamente o conflito” e admite “preocupação”, mas evita comentar o cenário atual.

Quanto ao nível de precariedade existente em Setúbal, na ordem dos 90%, de acordo com os números do Sindicato dos Estivadores e Atividades Logísticas (SEAL), a explicação poderá estar exatamente no crescimento da atividade portuária nos últimos anos, muito por força da Autoeuropa.

No sector portuário parece ser consensual haver uma bolsa de trabalho precário, para cobrir picos de atividade, mas Setúbal ultrapassou todas as barreiras, admitem também.

“Há efetivamente um desequilíbrio no número de trabalhadores com vínculo precário em Setúbal, mas isto deve-se ao facto de o Porto ter crescido muito nos últimos anos, com a saída de linhas de contentores de Lisboa para aí e com a Autoeuropa”, admite António Belmar, diretor executivo da AGEPOR - Associação dos Agentes de Navegação de Portugal, referindo que outras empresas, como a Quimigal, a Siderurgia Nacional e a Navigator também usam habitualmente o porto sadino.

Futuro de Setúbal em risco?

Esta estrutura, diz, “está francamente preocupada com o problema e com a situação na Autoeuropa, pelo impacto que tem na balança comercial nacional”.

E, a olhar com “muita preocupação para o futuro do Porto de Setúbal”, está, também, o Sindicato dos Trabalhadores e Juntas Portuários. “Nenhum dos atores envolvidos está a pegar no assunto como deve e o Porto de Setúbal corre sérios riscos neste momento”, refere o vice-presidente deste sindicato, Serafim Gomes.

“A carga acabará sempre por encontrar outros caminhos alternativos, mas isto tem custos”, reconhece António Belmar, admitindo que a alternativa portuária da Autoeuropa, pela especificidade do produto automóvel, esteja em Espanha, em portos como Vigo ou Santander.

As estatísticas da APSS deixam claro que o movimento de carga e descarga de automóveis em Setúbal quase duplicou desde 2013, de 124 para 223 mil unidades, com os desembarques em 2017 (126 mil) a baterem os embarques (96 mil).

Para o período de 5 a 9 de novembro, a administração portuária tinha previstos 28 navios em Setúbal. E de 12 a 16 deveriam passar por ali mais 38 navios. A APSS não deu números sobre a quebra de movimento portuário devido à guerra laboral no porto sadino, mas a AGEPOR admite que a situação atual, em cima da greve declarada pelo SEAL ao trabalho extraordinário, a decorrer deste agosto, “está a criar muitos problemas, agravando muito o custo das operações”.

Autoeuropa pode parar

Se o impasse no porto de Setúbal se mantiver até ao final da semana a atividade da Autoeuropa, em Palmela, pode ser seriamente afetada.

O Expresso apurou que a fábrica da Volkswagen pode ficar com 9000 automóveis parados, à espera de embarque no porto de Setúbal. Aliás, neste momento a unidade de Palmela já está a estacionar carros acabados de produzir no perímetro da base aérea do Montijo, por falta de condições logísticas de armazenamento no porto de Setúbal.

Na pior das hipóteses, o diferendo laboral desencadeado por um grupo de estivadores precários e a empresa de trabalho portuário Operestiva pode levar à paragem da fábrica.

Algumas fontes garantem que o Governo não está a conseguir conciliar as partes em confronto, apesar de, já hoje, o Ministério do Mar ter afirmado à agência Lusa que tem havido constantes diálogo e reuniões com os vários operadores portuários do porto de Setúbal.

Uma fonte da Autoeuropa diz que esta situação está a ser muito mal encarada pela multinacional alemã Volkswagen, que ainda na semana passada abriu em Lisboa um centro de desenvolvimento de software do grupo.

Sindicato denuncia “contratações” em Lisboa

No Porto de Setúbal, se nos primeiros dias havia sempre dois trabalhadores nos dois turnos principais, esta quarta-feira os principais terminais de Setúbal (Ro-Ro e contentores) estiveram completamente parados.

O SEAL, que está a acompanhar os trabalhadores garante que outros estivadores em situação precária em Lisboa já foram chamados a trabalhar em Setúbal, mas recusaram, “solidários com os colegas”.

No entanto, a direção do sindicato denunciou, também, que “um conjunto de trabalhadores precários do porto de Lisboa que sempre trabalhou neste porto e nunca prestou qualquer trabalho noutro“ tinha sido convocado para se apresentar amanhã, junto à Gare Marítima de Alcântara, “a fim de serem levados em carrinhas para um qualquer terminal do Porto de Setúbal, para aí prestarem trabalho”.

Por isso, em comunicado, o SEAL apela a que os trabalhadores “não respondam nem a convocatórias de trabalho ilegal nem a provocações de qualquer tipo”. “Os precários não são sindicalizados, é verdade, mas estamos a apoiá-los" diz o presidente do SEAL, António Mariano, ao Expresso.

Para este sindicato, esta não é, aliás, a única frente de conflito laboral aberta. Desde agosto, o SEAL declarou uma greve nacional ao trabalho extraordinário, na sequência de alegadas perseguições a sócios em Leixões e no Caniçal (Madeira). Por força da divisão territorial da força dos sindicatos dos estivadores, esta é, no entanto, uma greve que se faz sentir de forma especial em Lisboa e entre os trabalhadores efetivos de Setúbal.