Política

Estado da nação: os números do oásis, os valores do deserto e a esquerda temperada

<span class="creditofoto">Foto Tiago Miranda</span>

Foto Tiago Miranda

Demasiados medicamentos para a hiperatividade das crianças. Dívida pública alta. Emigração sem estancar. À direita e no PAN, temos uma visão árida do país. Mas há um retrato verdejante através dos resultados do Governo e das “conquistas” da esquerda. Já Bloco e PCP tanto (auto)elogiam o estado da nação, como apontam o que falta mudar. Cada partido escolheu três números para ilustrar a sua paisagem

Texto Vítor Matos *

Se torturarmos as estatísticas, os números dizem o que quisermos. Neste caso, nem é preciso maltratar a matemática: os partidos escolhem valores para marcarem uma posição política. O Expresso pediu três números a cada partido com assento parlamentar, que ilustrem o Estado da Nação – debatido esta tarde ao longo de 226 minutos no Parlamento. Antes da 'geringonça', estes debates eram feitos de oásis vs desertos. Cada um tinha uma paisagem nos seus olhos, conforme a sua posição política. Agora, nos partidos que estavam fora do 'arco da governação', há uma zona temperada onde estes reclamam a partilha dos louros do Governo: Bloco de Esquerda e PCP escolhem dois aspetos bons e um mau: os positivos são "as conquistas" das negociações com os socialistas e os maus, aquilo que o Governo insiste em fazer contra a sua opinião. Mas vamos aos números. E aos argumentos.

Os números do oásis da 'geringonça'

Para os socialistas - embora António Costa vá garantindo que ainda há muito a fazer - a nação é um horizonte verdejante, onde se virou a página desértica da austeridade. Foram criados 350 mil novos postos de trabalho, "80% sem termo", responde Ana Catarina Mendes, secretária-geral adjunta do PS. Melhor ainda, o Governo fez a quadratura do círculo ao conseguir manter as contas certas, atingindo um défice histórico de 02,% do PIB. Se podemos adivinhar aqui um eixo de comunicação para os próximos meses, a socialista avança outro número que servirá de argumento para o PS se defender dos problemas apontados ao Governo na Saúde: 78% do valor do aumento de despesa pública foi em saúde e prestações sociais.

Dos partidos da 'geringonça' não chegam enormes encómios ao Governo, mas Bloco, PCP e PEV põem-se na fotografia do que correu bem para puxarem por aquilo que alegam ter levado o PS a fazer: 95 euros de aumento no salário mínimo nacional, destaca o Bloco de Esquerda com a ressalva de que "foi garantido" pelo acordo entre o Bloco e o PS". Se esta foi uma coisa boa que aconteceu a muita gente, os 800 milhões de euros que em cada ano aumentaram as contribuições para a Segurança Social foram fruto de uma estratégia económica baseada no emprego e nos salários. "Somando a diversificação de fontes de financiamento (consignação de 1% do IRC, 198 milhões em 2018; e adicional ao IMI para património de luxo, 50 milhões por ano), a sustentabilidade do sistema sairá reforçada com 4 mil milhões no fim da legislatura", reclama o Bloco.

Sabe o que representam 396,25 euros escolhidos pelo PCP? É um dos números extraídos de uma das medidas mais emblemáticas do Governo, e que os comunistas defendiam há anos: a poupança que as famílias fazem com a redução do preço dos passes sociais. "Com a entrada em vigor do passe Metropolitano Família, em Agosto, uma família de Setúbal com dois filhos a estudar no Ensino Superior em Lisboa vai pagar 80 euros mensais, face aos 476,25 euros que pagava até Abril", diz o PCP através do seu gabinete de imprensa. "Após décadas de propostas do PCP, este ano avançou a redução tarifária nos transportes públicos em todo o país, com particular incidência nas áreas metropolitanas". Mais um número positivo: 1.176.863 alunos da Escola Pública, que frequentam os 12 anos da escolaridade obrigatória, vão ter acesso aos manuais escolares gratuitos já em Setembro, por "proposta e insistência do PCP". "Uma medida que, ao longo do percurso escolar de um aluno, significa (a preços atuais) uma poupança média de cerca de 1600 euros para a família", alegam os comunistas.

Os Verdes destacam os 100 vigilantes da natureza recrutados para garantir a proteção dos ecossistemas, mas também os 13% da redução do IVA na restauração: "Provou-se que a política fiscal pode dinamizar a economia, contribuindo não só para elevar o poder de compra dos cidadãos como para criar postos de trabalho.

Os valores do deserto: tudo seco à direita e o que falta regar pela esquerda

Agora, o lado negro, onde tudo corre mal. Há 2,2 milhões de portugueses que continuam a viver em risco de pobreza (dados do INE relativos a 2018), aponta Fernando Negrão, líder parlamentar do PSD. "Não obstante registar-se alguma redução em relação aos anos anteriores, este número mostra a dimensão das desigualdades que persistem e também a incapacidade do Governo para atacar eficazmente este grave problema, aproveitando a conjuntura económica favorável de que beneficiou."

Outro número mau, segundo o PSD: 259 mil portugueses saíram do país durante o mandato socialista (de 2016 a 2018, segundo dados de organismos estatísticos de vários países). Fernando Negrão aponta uma agravante: "O ano passado, o número de novos emigrantes voltou a subir, depois da redução verificada desde 2015." Se o Governo também não foi capaz de "atrair os portugueses que estavam fora (como prometeu)", deixa um país com um problema adicional por ter uma "política económica que não incentiva a poupança". Segundo Negrão, "a taxa de poupança das famílias portuguesas foi de 4,6%". O líder parlamentar do PSD alega que "é um novo mínimo que coloca os níveis de poupança atual equiparáveis aos da década de 50 do século passado, quando o país vivia num cenário de grande atraso e pobreza. Recorde-se que em 2012 e 2013 (em plenos anos da troika) a taxa de poupança dos portugueses foi de 8,3%. Hoje, os portugueses poupam menos de metade do que a zona euro."

34% é uma percentagem mágica, mas negra, para o CDS. Cecília Meireles, deputada centrista, aponta esta percentagem como o valor da carga fiscal em 2018. É um mau sinal, para o partido de Assunção Cristas, porque ao mesmo tempo o investimento público caiu. "Um recorde que, além de representar a quebra de uma promessa do Governo é, talvez, o mais exemplificativo. De cada vez que a economia cresce, o Estado fica com a maior parte desse crescimento e consome a riqueza no presente." Se este valor é diluído em vários impostos indiretos, os 45 mil doentes que tiveram de esperar mais do que o recomendado por uma cirurgia sentiram na pele os problemas do SNS. "Em quatro anos duplicou este número, o que ilustra o estado absolutamente caótico da Saúde", diz Cecília Meireles. Finalmente, a dívida pública de 252.400 milhões de euros. "O valor nominal continua a aumentar e a ser um problema estrutural, tornando-nos dependentes do BCE. Será um dos principais problemas das próximas décadas", argumenta a deputada do CDS.

Ainda na área da Saúde, o PAN - que tem apenas um deputado e participa esta quarta-feira no seu primeiro Estado da Nação de final de legislatura - destaca os 25% de pessoas que morrem nos hospitais portugueses e que têm diabetes. E ainda os 19.550 euros gastos diariamente pelos portugueses na compra de medicamentos para a hiperatividade das crianças (ritalina e outros). "Não podemos ignorar este grave e silencioso problema", diz o deputado André Silva, porta-voz do partido - que reside numa eventual medicação excessiva de crianças e adolescentes e no potencial abuso de medicamentos estimulantes, nem nos podemos demitir de contribuir para o resolver".

Já a 'geringonça', como temos visto ao longo destes quatro anos, não se faz apenas de elogios. Se há tensões na solução governativa, há críticas e reclamações. Os comunistas criticam os mais de 100 mil milhões de euros em juros da dívida pública desde a adesão ao euro: "Uma realidade que o Governo minoritário do PS não enfrentou, recusando a necessidade de renegociar a dívida pública, que continua a aumentar em termos nominais, de forma a libertar recursos necessários às respostas necessárias para debelar os problemas que o País enfrenta". Por sua vez, o Bloco anota como fator negativo os quatro em cada 10 euros do orçamento da saúde que é entregue diretamente ao setor privado.

E se num deserto falta água, o PAN diz que são necessários 15.500 litros de água necessários para produzir um quilograma de carne de vaca e o "erário público não pode servir para financiar indústrias poluentes". Veremos se no fim do debate ganham as teses do oásis, do deserto ou das zonas temperadas.

* Com Carolina Reis, Filipe Santos Costa, Mariana Lima Cunha, Miguel Santos Carrapatoso e Rosa Pedroso Lima