Chamem-me o que quiserem

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Henrique Monteiro

O cisne negro, a historiadora, o racismo e os censores

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Podemos falar a sério, e com calma, das questões levantadas por um artigo da historiadora Maria de Fátima Bonifácio (MFM)? Sem entrar em histerias persecutórias, acusações sem fundamento ou defesas hipócritas? Podemos separar o trigo do joio, a verdade da mentira? Podemos parar de apelar à censura do que não gostamos ou de espalhar falsidades sobre o que não conhecemos? Se podemos, permitam-me estas linhas.

Portugal é um país racista. Não o é agora, nem há cinco anos, nem há 50. Sempre foi. Aliás, penso não haver sociedades em que o racismo não exista. O Brasil, por exemplo, tantas vezes dado como exemplo de integração e miscigenação, é bastante racista. E o racismo de Portugal e Brasil é, aliás, específico. Baseado no equívoco do luso-tropicalismo e outras balelas, assume um paternalismo horroroso (as expressões ‘pretinhos’ normalmente acompanhadas de ‘coitadinhos’ ou de frases como “é negro, mas inteligente” ou “cigano, mas bem-educado” são típicas). Na década de 80 disse isto mesmo numa Universidade dos EUA (onde Brasil e Portugal eram vistos como não racistas) e quase toda a gente discordou. E, no entanto, em relação à percentagem da população preta, o Brasil tinha (e tem) uma representação política a léguas do país normalmente apontado como cúmulo do racismo – os EUA.

Aqui, devemos distinguir os tipos de racismo; basicamente, o suave e o duro. Um pode ser caracterizado por frases, textos ou opiniões que sendo errados – filosófica, sociologística e biologicamente – não visam a perseguição dos outros, ou a sua menorização legal; o outro, o duro, visa maltratar, menorizar, expulsar ou de qualquer outro modo prejudicar de facto uma ou diversas comunidades. O primeiro racismo combate-se com ideias, factos e provas, ou seja com um combate cultural; o segundo, além deste combate, tem a frente judicial. É crime e caso de polícia. Baralhar os dois só prejudica o combate a ambos.

De resto, como todos somos seres humanos, independentemente da etnia, cor ou região do mundo, não podemos admitir qualquer cedência. Ou seja, não podemos ser tolerantes com os intolerantes.

Assim, caso se fique por tomadas de posição que, por muito erradas que estejam, não apelam à ação contra o outro (como era o caso do texto de MFB), o caminho é o do debate, expondo os erros e as mentiras que voluntária ou involuntariamente encerram (como, uma vez mais é o caso de MFB). Não devem ser proibidas, porque a proibição é a arma dos inseguros e dos autoritários, além de impedir que sejam rebatidas posições que se generalizam na sociedade.

Infelizmente, foi quase só exaltação e algum proibicionismo a reagir ao texto que MFB escreveu no “Público”. Pareceu-me toda ela (incluindo a do ponderado diretor do ‘Público’) desproporcionada. Ele próprio começa o seu Editorial a explicar porque publicou e não devia ter publicado (!?) o texto da historiadora, dizendo que recebeu mensagens a dizer que a posição de MFB era ‘insultuosa’, ‘vergonhosa’ e ‘indigna’. Pode, de facto, dizer-se muita coisa de tal texto, mas o mesmo se pode dizer de muitos outros, que saíram em todos os jornais e redes sociais, sem exceção. Recordemos Mamadou Ba, dirigente do SOS racismo, que nada contribuiu para a sua própria causa ao escrever um ‘post’ intitulado “A bosta da bófia”.

O diretor do “DN” também a este respeito disse muita coisa com as quais, no geral, concordo, mas que enfermam do mesmo mal do que MFB. Esta, fala com uma empregada doméstica cabo-verdiana e retira conclusões sobre os africanos, nomeadamente sobre o facto de não terem os mesmos adquiridos culturais que os europeus; Ferreira Fernandes aponta uma tonelada de africanos amigos seus (alguns meus) que, na sua base cultural têm exatamente os mesmos valores do que eu, do que ele e do que 90% dos portugueses, franceses ou espanhóis. No entanto, caro José Ferreira Fernandes, bastaria um só exemplo, para se tornar no ‘cisne negro’ de MFB. Ou seja, na prova de que as suas posições se baseavam (como já escrevi no Facebook) em generalizações abusivas. O mesmo fez a historiadora quanto a ciganos. Não tem um pingo de razão, o que numa historiadora, ou qualquer pessoa de ciências sociais, não abona. Os ciganos são cristãos (João Miguel Tavares optou por essa crítica a MFB, com razão) e há os que se integram, como o advogado Carlos Miguel, ex-presidente da Câmara de Torres Vedras e atual secretário de Estado das Autarquias. E ainda erra MFB quando diz que a excisão genital é imperativa no islamismo. Muitos sheiks de diversas comunidades em todo o mundo combatem essa prática que dizem ser contra o próprio Alcorão.

Claro que do outro lado podem dizer que são exceções. Mas comecemos por aí. O que aconteceu aos meus amigos angolanos e moçambicanos (para não falar dos ‘atlânticos’ cabo-verdianos, como lhes chama MFB)? O que aconteceu a Carlos Miguel e seguramente muitos outros ciganos, com honra de ser ciganos, para se terem integrado? E o que aconteceu aos que não se integraram, porque (apesar de todo o histerismo e proibicionismo) também os há? Uma sociedade que tem grupos não integrados no seu múnus cultural também se deve interrogar sobre as suas responsabilidades nesse facto. MFB como historiadora devia saber que são precisos dois para dançar o tango, antes de imputar a um dos lados todas as culpas da não integração.

Uma sociedade que tem grupos não integrados no seu múnus cultural também se deve interrogar sobre as suas responsabilidades nesse facto. MFB como historiadora devia saber que são precisos dois para dançar o tango, antes de imputar a um dos lados todas as culpas da não integração

Eu só encontro uma explicação (e posso estar totalmente errado, como nunca admitem aqueles que exigem medidas e insultam). O fenómeno de não integração, podendo, em parte, dever-se à falta de vontade de membros dessa comunidade, deve-se, e muito, à falta de vontade da sociedade portuguesa. Nunca houve o mínimo desejo de os integrar. Uns, porque acham que eles devem viver em regime de ‘apartheid’ (havia, até, câmaras comunistas que nem deixavam ciganos passar pelas suas terras); outros, porque acham que o multiculturalismo é deixar cada etnia, cada grupo fazer o que entende, mesmo que aquilo que entenda seja contra as leis gerais do país em que estão.

Estas duas posições, parecendo opostas, encontram-se na tribalização e guetização da sociedade. E foi este o ponto a que se chegou em muitas cidades europeias.

Em Portugal, este caldo de cultura impregnou instituições (a polícia, desde logo), mas também os partidos. Que partidos têm como exemplo integrações bem-sucedidas de minorias étnicas? Ou mesmo de estrangeiros nacionalizados e há muito radicados?

Orgulhamo-nos de não ser racistas, mas somos. Temos um primeiro-ministro de origem indiana e isso pode, até, dar a ideia da nossa integração. Mas o nosso racismo existe e é, como em quase todos os casos, sobretudo social. Podemos ter pretos integrados se tiverem nascido na classe certa e tiverem os amigos certos. Como temos portugueses com origem indiana, como Narana Coissoró, no CDS, Costa no PS (membros ou descendentes da mais alta casta indiana, os brâmanes), negra, como Hélder Amaral no CDS, ou cigana, como Carlos Miguel, e africana, como Francisca Van Dunem, no Governo. Porém, a essência deste país que jamais quis enfrentar o seu problema de racismo endémico compraz-se agora com umas histerias contra alguém que escreveu um texto enviesado cheio de erros, como se aquilo que ela diz não fosse voz corrente. E pior do que voz, é por vezes prática corrente. Basta ver que é nas atividades (de que a política e o espaço público não fazem parte) que esse racismo mais se manifesta. Justamente, nas camadas mais carenciadas.

Depois há o problema das quotas. Nunca acreditei que leis, pura e simplesmente impostas, resolvessem problemas. Se houver quotas na Universidade, por que não na Função Pública? E no Exército? E na magistratura? E em todos os lados? E se concedemos direitos, que deveres estamos a requerer? Que integração nos nossos padrões e modos de vida impomos?

E, no fim, pergunto: se proibirmos, censurarmos ou nunca publicarmos textos como os de MFB, poderemos verdadeiramente discutir este assunto? Ou manteremos tudo como está, o que é francamente mau? Na verdade, estas ondas têm o condão de limpar as consciências da ausência de soluções para a integração, que terá de ser feita não apenas com cedências e facilidades concedidas às etnias ou grupos específicos, mas com a exigência do respeito pela República e pelas suas leis.

O problema é bem mais fundo do que atirar poeira para os olhos de cada um com quotas. O problema está em quantos portugueses verdadeiramente acreditam que apenas há uma raça, que todos somos irmãos e descendentes de muito poucos seres humanos, que devemos ser fraternos.

O resto é barulho e ondas de indignação das redes sociais que passam e deixam tudo na mesma.