Miguel Duarte e o nosso muro
É fácil desprezar Donald Trump. Ele é uma figura boçal. E a sua boçalidade torna evidente a frieza criminosa do egoísmo. É isso que explica que os europeus olhem com indignação para o muro que ele quer construir na fronteira com o México. Os mesmíssimos europeus vivem há décadas com os muros de Ceuta e Melilla, que cercam a Europa fortaleza de onde olhamos, com ares de superioridade, para o bárbaro Trump. Mas o muro mais eficaz é mesmo o Mediterrâneo. Esse não precisa de ser construído. Basta ser aproveitado de uma forma bem mais impiedosa e cruel do que qualquer coisa que tenha sido feita pela administração Trump.
Desde 2014, chegaram à Europa, vítimas de uma Primavera Árabe fracassada, de guerras e de crises ambientais, quase dois milhões de refugiados. O pico foi em 2015, com mais de um milhão de chegadas. Este ano entraram mais de 31 mil, 23,5 mil pelo mar, mais de 23% crianças. Nestes cinco anos morreram ou desapareceram quase 20 mil refugiados a atravessar o Mediterrânio. Este ano já foram mais de 500.
Antes desta calamidade, a Europa ainda reagiu com decência. De outubro de 2013 a outubro de 2014, a operação “Mare Nostrum”, levada a cabo pelo Estado italiano, trouxe em segurança 150 mil refugiados para terra. Mas, em 2014, muito antes de Salvini ou de Trump, essa operação foi substituída pela Triton, apoiada pela Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira, a Frontex. Ao contrário da sua antecessora, centra-se no patrulhamento da costa, não no resgate. Salvar vidas deixou de ser uma prioridade.
No mar, militares europeus assistem impávidos e serenos, em águas internacionais, à captura dos barcos com refugiados pela guarda costeira da Líbia, que os leva de novo para terra. É preciso dizer o que isto quer dizer. Quer dizer que os europeus entregam estas pessoas em estado de necessidade profunda a forças que, em representação de um Estado falhado, não lhes garantem rigorosamente nada. Quer dizer que elas são devolvidos a um país onde, como imigrantes, estão sujeitos a espancamentos, violações, roubos. Tudo documentado por observadores internacionais. É por isso que muitos refugiados se atiram à água quando estão prestes a ser capturados pelos líbios. Preferem a morte ao regresso ao inferno de que fogem.
A Europa não construiu os muros de Trump para que os refugiados não chegassem. Limitou-se, muito antes de Salvini, a substituir o programa de resgate por um programa de patrulhamento e a entregar o problema ao Estado falhado da Líbia. Só que ficaram nessas águas várias ONG. Que, escândalo dos escândalos, se dedicaram a cumprir o artigo 98 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. Depois de optar por deixar morrer quem aqui tente chegar, é preciso travar quem continua a agir. Esta é a forma criminosa e cínica que os governos europeus encontraram para impedir que os refugiados passem as fronteiras: deixá-los morrer no mar e criminalizar quem os tente trazer para terra. Bem mais sinistro do que um muro.
Esta é a forma criminosa e cínica que os governos europeus encontraram para impedir que os refugiados passem as fronteiras: deixá-los morrer no mar e criminalizar quem os tente trazer para terra. Bem mais sinistro do que um muro
A ONG alemã Jugend Rettet foi um alvo recente deste processo de criminalização da decência. O seu barco Iuventa, que salvou cerca 14 mil vidas, foi apreendido em 2017 pelas autoridades italianas e dez dos seus tripulantes foram acusados de auxílio à imigração ilegal. O português Miguel Duarte é um deles. Antes da criminalização, o Estado italiano tentou o controlo. Propôs um código de conduta que sugeria que cada embarcação tivesse um polícia armado a bordo, que estivessem sempre localizáveis e que não entrassem em águas territoriais líbias. A Jugend Rettet e mais dez ONG (entre as quais os Médicos Sem Fronteiras) recusaram-se a assinar.
A acusação de auxílio à imigração é especialmente absurda quando quase todas as operações contaram com a ajuda do Centro de Coordenação Marítima de Roma (CCMR). Para que a coisa fizesse algum sentido, afirma-se que houve contactos com traficantes. Talvez para nos vender a ideia de que esta ONG está a soldo do tráfico. Há quem faça a acusação de outra forma, mais subliminar: que, completando a última parte da viagem dos refugiados, ajudam os traficantes e até lhes poupam trabalho. A melhor resposta que li, foi no Twitter: é como acusar os médicos do IPO de ajudar as tabaqueiras ao minimizar os danos do seu esquema. É perversão absoluta de todos os valores. Salvar um náufrago é um dever. Um dever escrito nas leis do mar e na decência de qualquer pessoa. Uma Europa que o nega é uma Europa que não pode ser exemplo de nada para ninguém.
Parece que anda tudo à procura de qualquer coisa em que acreditar. De heróis. Se querem um herói e se ele não tiver de ser futebolista e milionário, têm um português da Azambuja, com 26 anos e a fazer um doutoramento em Matemática. Arrisca-se, por ter dedicado parte da sua juventude a salvar vidas, a uma pena de prisão de 20 anos. A acusação de que foi alvo gerou uma onda de solidariedade que permitiu recolher dezenas de milhares de euros para a sua defesa. Não sei se algum juiz terá coragem de condenar o Miguel e os seus companheiros. Não o desejo, mas talvez isso acordasse as consciências europeias. Ainda assim, parece-me que o objetivo político desta acusação é outro e já foi conseguido: semear o medo nas ONG e nos seus voluntários. Das dez ONG que resgatavam refugiados, só uma se mantém no ativo.
Miguel Duarte contou, numa entrevista, que o que mais o impressionou nas experiências que teve nas operações de resgate ou nos campos de refugiados para onde foi nos intervalos, foi a gratidão. E que a imagem mais forte é a de ver que, mal se sentem em segurança, aqueles seres humanos adormecem. Nós não temos qualquer razão para dormir. Pelo menos enquanto os governos europeus continuarem a condenar à morte por afogamento centenas de refugiados.