25 de Abril

30 mil nomes de presos políticos para lutar contra a demência coletiva

Montagem do Memorial aos Presos e Perseguidos Políticos na estação de Metro da Baixa-Chiado em Lisboa (saída para o Largo Camões) <span class="creditofoto">Foto D.R.</span>

Montagem do Memorial aos Presos e Perseguidos Políticos na estação de Metro da Baixa-Chiado em Lisboa (saída para o Largo Camões) Foto D.R.

A estação de Metro da Baixa-Chiado, em Lisboa, vai ‘falar’ e contar história. Vai lembrar a vida de 30 mil portugueses, homens e mulheres, que durante 48 anos foram presos, muitos torturados, por dizerem o que pensavam e lutarem contra a falta de liberdades políticas, sindicais e sociais. Preste atenção ao número, porque 30 mil são três dezenas de milhar de pessoas de todas as idades, profissões, origens sociais e geográficas a quem devemos um Obrigada por podermos falar sem termos medo de ser torturados

Texto Manuela Goucha Soares

Um país é um eu gigante, feito de múltiplos 'eus', de múltiplas memórias de muitos nós. Se um velho sofre por esquecer os nomes, os sítios, as caras, as perguntas que fez cinco minutos antes, por sentir que está doente e a perder a memória da vida que viveu, um país que não cuida da sua memória também deverá sofrer.

É para evitar que Portugal seja um país enfermo de demência coletiva que o Alfredo, o Artur, a Diana, o Gaspar, a Helena, a Joana, o João, o Luís Farinha, a Margarida, o Pedro, a Rita e a Sara se juntaram para inaugurar o memorial que evoca os nomes de 30 mil mulheres e homens que lutaram contra a ditadura ao longo de 48 anos.

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Foto D.R.

Há nomes que todos conhecem e nomes de quase nunca ninguém ouviu falar. Há nomes de pessoas que anos mais tarde foram grandes figuras do Estado português e nomes de quem não sabia ler. São 30 mil os nomes escritos e inscritos em milhões de letras que vão poder ser lidos por todos os que saírem do Metro na estação da Baixa-Chiado [Lisboa] em direção ao Largo Camões. Há nomes que estão escritos em enormes painéis e nomes que passarão em écrãs que são memória. Trinta mil nomes de mulheres e homens que lutaram contra a ditadura porque são “cerca de 30 mil nomes que constam nos livros do Registo Geral de Presos”, diz ao Expresso o historiador João Esteves, um dos doze nomes que integra a Comissão Organizadora do Memorial aos Presos e Perseguidos Políticos.

Assim era o edifício onde funcionava a sede PIDE/DGS, na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa. A memória não foi preservada e hoje é um condomínio privado <span class="creditofoto">Foto Ana Baião</span>

Assim era o edifício onde funcionava a sede PIDE/DGS, na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa. A memória não foi preservada e hoje é um condomínio privado Foto Ana Baião

Vai haver vozes discordantes, vozes que dirão que estes 30 mil nomes mereciam um lugar mais digno do que um corredor sombrio de uma sombria estação de Metro de Lisboa.

Mas este corredor é simbólico porque a prisão era um lugar escuro e frio, que cheirava a tortura, gritos, separação e sofrimento. E a prisão começava a poucos metros dali, na sede da PIDE, nos números 18 a 26 da Rua António Maria Cardoso, poucos metros abaixo do Teatro São Luiz.

“Era naquela casa que, diariamente, 24 horas sobre 24, eles [os Pides] escutavam telefonemas, confiscavam cartas, interrogavam, ameaçavam e torturavam cidadãos. Era dali que eles partiam para prender mulheres e homens, acusando-os das suas ideias, da sua ação política, de iniciativas de cariz meramente cultural ou associativo ou, simplesmente, de práticas religiosas a que António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano eram avessos”, lembra Helena Pato, a mulher que saltou dos calabouços da PIDE para as redes sociais, e que foi um dos mais ativos elementos da Comissão Organizadora.

Helena Pato, antifascista, ex-presa política e membro da Comissão Organizadora do Memorial aos Presos e Perseguidos Políticos <span class="creditofoto">Foto Tiago Miranda</span>

Helena Pato, antifascista, ex-presa política e membro da Comissão Organizadora do Memorial aos Presos e Perseguidos Políticos Foto Tiago Miranda

“Investigámos todos os locais possíveis, que estivessem próximos da sede da PIDE na rua António Maria Cardoso, da sede da Censura, e do Largo do Carmo, o lugar mais simbólico do 25 de Abril de 1974. Pensámos em várias hipóteses... mas todos esses locais são privados. Foi assim que nos lembrámos da estação de Metro da Baixa-Chiado, um sítio por onde passam milhares e milhares de pessoas todos os dias. Contactámos a Câmara Municipal de Lisboa e o Metropolitano e fomos muito bem acolhidos pelas duas instituições. O Memorial é [formalmente] inaugurado esta quinta-feira, no dia em que se comemoram os 45 anos do 25 de Abril”, diz Helena. E nós lembramos que o dia 25 de Abril de 1974 também aconteceu numa quinta-feira.

Diário de Lisboa de 13 de agosto de 1959, onde se noticia a condecoração de funcionários da PIDE <span class="creditofoto">Fundação Mário Soares</span>

Diário de Lisboa de 13 de agosto de 1959, onde se noticia a condecoração de funcionários da PIDE Fundação Mário Soares

Em agosto de 1959, na véspera de um violento incêndio ter destruído uma igreja barroca na Baixa de Lisboa (Igreja de São Domingos), a imprensa diária noticiava que “três membros do Governo assistiram à condecoração de alguns funcionários” na Escola Técnica da PIDE que funcionava em Sete Rios. Os ditos funcionários foram condecorados “por terem praticado atos merecedores de distinção, ou terem servido de forma digna de apreço no Ultramar  (...)” – o que significava em hierarquia de polícia política significava ser bom informador, interrogador, ou torturador.

Helena Pato lembra que o edifício da rua António Maria Cardoso era “uma casa de terror, que devia ter dado lugar a um Museu da Resistência, naquele exato local. Assim não foi, apesar das enormes movimentações de cidadãos antifascistas e de políticos, nesse sentido”.

E também lembra – porque lembrar é a ginástica da memória – que a PIDE interrogava “até ao limite da resistência humana, quem defendia a libertação das colónias, quem participava em greves ou exprimia o pensamento. Vivia-se num país ocupado quartel-general na António Maria Cardoso. Iam buscar mulheres e homens, ao romper do dia, e enfiavam-nos naquela casa de pesadelo. Pela noite dentro, chegavam carrinhas vindas do Alentejo, do Algarve ou de outras zonas do país, carregadas de democratas de todas as idades, que eram tratados pior que animais: homens, mulheres e, quantas vezes, crianças que acompanhavam as mães”.

Amanhã, e em todos os amanhãs dos próximos 365 dias, quando passar no corredor da estação de Metro da Baixa-Chiado, pare um minuto para ler três ou quatro nomes de portugueses que lutaram para que hoje possa votar e viver em Liberdade.