CINEMA
Morreu Diamantino, viva Diamantino
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“Ronaldo” já não pertence a Ronaldo. Pertencem-lhe as duas pernas com que joga à bola, pertence-lhe a imagem com que faz dinheiro em publicidade, mas não lhe pertence já a ideia de Ronaldo, apropriada pelos seus conterrâneos como bandeira estandarte de um povo. É precisamente sobre o ideário de um país, traçado aqui e agora, que trata o fabuloso novo filme de Gabriel Abrantes realizado a meias com Daniel Schmidt. Diamantino não é sinónimo de Ronaldo, é sinónimo de Portugal
Texto Cláudia Marques Santos
Somos um pouco como a aura colada aos adeptos sportinguistas, exultamos enquanto povo entre dois extremos: surge uma derrota (em cima de tantas que carregamos às costas) e não há pior povo que o nosso; acontece um momento de glória e somos os melhores do mundo. Aquando do último Mundial de Futebol, os portugueses e as páginas dos jornais de todo o mundo exultaram com considerações acerca daqueles segundos de abstração mental de Cristiano Ronaldo antes de chutar para golo um livre que, aos 87 minutos, deu o empate por três bolas a Portugal frente a Espanha durante a fase de grupos. O “The Guardian” chegou mesmo a dizer que, “quando Ronaldo morrer, o seu cérebro devia ser doado ao museu da FIFA, uma vez que a sua força mental está para lá de qualquer compreensão”. Esse momento de “estar para lá de qualquer compreensão” devia cingir-se à essência da própria formulação e traduzir-se não num cardápio infindável de interpretações a tentar ver o que não está lá, mas em absolutamente nada. Quanto muito a algo absolutamente singelo e elementar como cãezinhos gigantes a correrem desalmados no relvado transformado num enorme campo de algodão doce cor-de-rosa.
Em “Diamantino”, o novo filme de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt que se estreia esta quinta-feira nos cinemas, os cãezinhos gigantes – investigámos e a raça parece-nos ser o fofinho Bichon Havanês, de franja com risca ao meio em cima dos olhos como o Iggy Pop – correm desalmados ao lado de um jogador chamado Diamantino, que, de bola no pé e equipamento azul e branco de FC Porto mas também de bandeira monárquica, vai fintando um a um os adversários até marcar um golo soberbo, digno de um uivo intergalático. Diamantino é também o nosso narrador e, em voz off, diz-nos, em jeito de apresentação: “É verdade, eu acho que algo de maravilhoso acontecia quando eu jogava. Algo assim tipo transcendental. Tudo se fundia, o relvado, os fãs… e era só eu. Eu e os cachorrinhos felpudos.”
Ser um génio, ter o corpo apropriado por um dom único, não se traduz necessariamente em inteligência mas resvala muitas vezes para solidão. Diamantino, aqui interpretado de forma inspiradíssima por Carloto Cotta, tem a companhia do pai para se escudar tanto do isolamento que a fama acarreta como da malvadez das irmãs gémeas que estão dispostas a tudo para lhe extorquir o dinheiro todo. Diamantino é uma alma inocente, assim como o é a ideia de um povo na sua génese, que se permite existir devido a uma forte crença enquanto coletivo através da qual vai sendo manipulada e conduzida para trilhar o que alguns definem como os desígnios do país.
Mas a Diamantino acontecem três coisas que lhe mudam o curso da vida: a morte do pai, único amigo e conselheiro; o desaire e a morte da carreira; e a vontade de um ministério de propaganda em querer transformá-lo em símbolo de uma portugalidade que implica premissas políticas de índole neonazi. Só que agora não se usa as masmorras, nos dias de hoje só se convive com filosofias do positivo e com os proveitos dados pelas ferramentas fantásticas da publicidade e da ciência. Diamantino vai ser a cara de uma campanha publicitária em que corporiza D. Afonso Henriques e chuta daqui para fora os árabes e vai ser também alvo de uma experiência genética com contornos de ficção científica para ajudar a criar mais exemplos de raça como ele. A questão é que a morte do pai lhe traz uma epifania: vê durante um sonho uma barca de refugiados a afundar-se e decide adotar uma criança refugiada. E dessa força - Diamantino é dócil e inocente mas não é parvo - resulta toda a reviravolta do filme.
Vencedor do Grande Prémio da Semana da Crítica na última edição de Cannes, “Diamantino” não se coíbe também de falar em marcas, há sucessivos pop ups de marcas como a Samsung ou a Nutella a cintilarem no grande ecrã, transformando o próprio filme num metaproduto, e exala de um sentido de humor que embrulha muito bem a história de mil folhas que nos é apresentada, à semelhança do que tinha já feito no anterior “Os Humores Artificiais”, em que humaniza um drone e o transforma num stand up comedian. Não o somos todos?
“Ronaldo” já não pertence a Ronaldo. Pertencem-lhe as duas pernas com que joga à bola, pertence-lhe a imagem com que faz dinheiro em publicidade, mas não lhe pertence já a ideia de Ronaldo, apropriada pelos seus conterrâneos como bandeira estandarte de um povo. É precisamente sobre o ideário de um país, traçado aqui e agora, que trata o fabuloso novo filme de Gabriel Abrantes realizado a meias com Daniel Schmidt. Diamantino não é sinónimo de Ronaldo, é sinónimo de Portugal