A tempo e a desmodo

A tempo e a desmodo

Henrique Raposo

Também querem tirar Picasso do streaming?

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Vivemos um tempo infantil ou infantilizador. É difícil explicar às pessoas que um romance ou filme com uma cena de violação não é misógino. Mostrar o exterior e interior de uma personagem misógina não é defender a misoginia. Quando descrevem essas cenas, George R. R. Martin ou Ruben Fonseca estão a levar-nos ao coração das trevas e à procura da catarse, talvez a primeira função da narrativa. Também é difícil explicar às pessoas que criticar o comportamento moral da pessoa (Michael Jackson ou Kevin Spacey) não pode determinar embargos e perseguições às obras de arte feitas por essa pessoa; perseguição, essa, que está a atingir níveis absurdos através do apagamento de filmes e músicas do streaming.

Ouvir ou não ouvir, eis a questão. Uma decisão pessoal e moral. Nunca poderá ser uma decisão económica das marcas <span class="creditofoto">Foto Steve Granitz / WireImage</span>

Ouvir ou não ouvir, eis a questão. Uma decisão pessoal e moral. Nunca poderá ser uma decisão económica das marcas Foto Steve Granitz / WireImage

Michael Jackson era pedófilo. Michael Jackson era um artista pop genial. As duas realidades coexistem. São duas frases separadas que nem sequer devem ser unidas com um “mas”. Cosby, Weinstein, Hemingway, Picasso, Schiele, Chaplin, Louis CK: todos estes homens de diferentes épocas tiveram comportamentos miseráveis ou dúbios; essa imoralidade pessoal não coloca em causa o juízo que se faz da sua obra. Um quadro do Picasso ou Schiele é genial, apesar do carácter questionável do seu autor. Riefenstahl e Eisenstein colaboraram com os regimes totalitários mais agressivos da História, mas os seus filmes são geniais. Não me sinto nazi ou comunista só porque os vejo. É este o juízo moral que é preciso fazer. E é um juízo pessoal, não corporativo.

Cuidado com o streaming: é um mecanismo perfeito para um sistema orwelliano que mente sobre o passado. Agora é a FOX que tira Michael Jackson dos “Simpsons”. Daqui a nada, é o Estado que apaga literalmente alguém

Não concordo, mas percebo o argumento das pessoas que não conseguem separar – pelo menos a curto prazo – a pessoa das obras. É aceitável. O que não é aceitável é o branqueamento da História feito pelas grandes corporações e canais como a FOX, que apagou do streaming dos “Simpsons” um episódio que contou com a participação especial de Michael Jackson. Isto é inaceitável, porque coloca a memória e o juízo moral nas mãos dos gestores de imagem das marcas. Esta não é uma decisão económica, mas moral. Os gestores de marca decidiram apagar do streaming os filmes e séries com o Kevin Spacey. E se agora os gestores de marca decidirem apagar do streaming as músicas de Michael Jackson, tentando assim salvar o bom nome da marca que quer esquecer o tempo em que esteve associada ao artista caído em desgraça? Cuidado com o streaming: é um mecanismo perfeito para um sistema orwelliano que mente sobre o passado a cada segundo. Agora é a FOX que tira Michael Jackson dos “Simpsons”. Daqui a nada, é o Estado que apaga literalmente alguém do passado.