A tempo e a desmodo

A tempo e a desmodo

Henrique Raposo

A liberdade tutelada

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A jornalista Rosa Pedroso Lima publicou na revista do Expresso um trabalho fundamental sobre um dos nossos maiores problemas: a liberdade tutelada, o espaço público amarrado à linguagem tática dos políticos, e não à linguagem da liberdade e da crítica. O espaço público deve ser dos cidadãos, o cidadão comum, o escritor, o intelectual, o professor, o especialista, o jornalista sénior, o ex-político. É assim em qualquer democracia ocidental, exceto em Portugal. Numa característica única e reveladora da nossa alergia à liberdade, os políticos no ativo são a maioria no comentário. É confrangedor. Os nossos políticos são jogadores e árbitros ao mesmo tempo.

Sim, é confrangedor comparar o nosso espaço público com outros espaços públicos. Rosa Pedroso Lima faz essa comparação. Um alemão, um americano, um inglês e até um espanhol ficaria espantado se descobrisse que quase 100 políticos ainda no acivo são comentadores ou colunistas nos média portugueses. Quase 100 políticos a comentar nos média é um cenário de uma ditadura ou de um país que acabou de sair de uma ditadura; quase 100 políticos a comentar à noite o que fizeram à tarde revela um espaço público tutelado, um regime com medo de sair da linguagem da manha tática, um país que não quer pensar em liberdade.

Quase 100 políticos a comentar à noite o que fizeram à tarde revela um espaço público tutelado, um regime com medo de sair da linguagem da manha tática, um país que não quer pensar em liberdade

Não estou a defender a imposição de um discurso neutral e científico dos especialistas contra a política. Não é isso. Deve existir pluralidade ideológica e cultural, sim, mas não diversidade partidária. A imprensa não pode ser uma cópia do Parlamento. Há escritores e intelectuais de diversas direitas, há escritores e intelectuais de diversas esquerdas, homens e mulheres com um discurso livre e independente de estruturas de poder partidário; homens e mulheres obviamente parciais nas suas opiniões, mas radicalmente mais livres do que os políticos: podem dizer o que pensam sem estarem preocupados com eleitoralismos e lutas internas. Isto não é física quântica, é a essência do debate de qualquer democracia ocidental, exceto Portugal.

Além da inversão dos valores, há ainda a questão da sobrevivência dos próprios média. E aqui quero destacar apenas os jornais: o que ganhou a imprensa com esta escolha? As pessoas que leem jornais querem ler uma coluna de um escritor, jornalista, intelectual ou especialista ou querem ler a enésima página de propaganda de um político? Volto sempre à mesma questão: por vezes, fica a ideia de que a imprensa portuguesa trabalha a pensar no eleitor, e não no leitor. Os resultados estão à vista: são raríssimos os colunistas sem qualquer filiação partidária. Os leitores também são cada vez mais raros.