Chamem-me o que quiserem

Chamem-me o que quiserem

Chamem-me o que quiserem

Henrique Monteiro

Touradas e civilização

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Devo dizer, em primeiro lugar, que não sou aficionado de tauromaquia. Nunca me interessei, mas julgo entender o seu apelo. Só vi uma tourada na vida, a convite de aficionados que me tentaram converter à arte. Consegui compreender o ponto de vista, mas não deixei de preferir muitos outros espetáculos – do teatro ao futebol – e nunca mais pus os pés numa praça de touros. Dito isto, sou contra a proibição ou a perseguição às touradas. Por motivos racionais, mas também porque me irritam quase todas as proibições sem nexo.

Analisemos uma frase da nova ministra da Cultura proferida durante o debate do Orçamento. Ao referir porque não descia o IVA para as touradas, quando o mesmo acontecia para alguns outros espetáculos, disparou: “Quanto à tauromaquia, não é uma questão de gosto, é de civilização”. A frase não é compreensível para quem tem a tutela da tauromaquia. Mas também não é feliz em si mesmo.

Entende-se que os militantes e ativistas antitourada, ou meramente os que por eles são influenciados, acham que é civilizacionalmente inferior gostar daquele espetáculo. Mas é arrogante e perigoso.

Há pessoas que gostam, amam a arte tauromáquica. Disso não há dúvidas. São cada vez menos, argumentam, e tal seria mais uma razão para deixá-la morrer sem a proibir. Mas vejamos o que recentemente se passou com a exposição de Mapplethorpe. Imaginemos que um ministro da Cultura tinha decidido qualquer limitação à exposição com o mesmo argumento: “Não é uma questão de gosto, é de civilização”. Cairia o Carmo e a Trindade, com alguma razão, pois estaríamos perante uma discriminação estatal a uma produção artística (o que se passou em Serralves entre administração e diretor do museu, nada tem a ver com isso, são entidades de direito privado).

Pior do que a discriminação, estaríamos a assumir que quem admira a obra de Mapplethorpe, seja porque razão for tem esse direito, seria incivilizado, ou algo do género. Por mim, não me espantaria que um qualquer Bolsonaro destes tempos, arranjasse um argumento assim contra uma exposição daquele género. Por isso, sim, acho o argumento perigoso.

A civilização é um produto da cultura, e é tudo menos instantânea. É produto de séculos. Uma boa parte do que descrevi, da corrida de cavalos ao cozinhar das lagostas, faz parte da própria civilização

Não nego que há uma certa racionalidade no movimento antitourada. A compaixão com a posição do touro no espetáculo é compreensível. Mas é-o igualmente com a das galinhas nos aviários ou das vacas nas vacarias. O homem (e homem, acreditem, deriva do latim Homo e quer dizer ser humano, e não macho ou masculino, isso vê-se em qualquer dicionário de latim) tem utilizado os animais, considerados seres inferiores, para seu prazer. Desde a gastronomia às corridas de cavalos e de galgos, passando pelas lutas de galos e cães. A pasta de fígado de ganso, é tanto melhor quanto mais sofrer o ganso a engordar à força; alimentos requintados, como o caviar ou os escargots (em português corrente caracóis) implicam a morte do bicho, enquanto as lagostas são cozinhadas vivas. Podemos, aliás, questionar-nos ainda sobre o que sentem os vegetais. Há quem diga que sentem qualquer coisa.

Tudo pode ser recusado em nome da civilização. Mas apenas da civilização que a senhora ministra tem na cabeça. A civilização é um produto da cultura, e é tudo menos instantânea. É produto de séculos. Uma boa parte do que descrevi, da corrida de cavalos ao cozinhar das lagostas, faz parte da própria civilização (palavra inventada por Mirabeau no “L’Ami de l’Homme” (ou tratado da população) em 1756. Curiosamente, por esse tempo, a tourada tinha centenas de anos, ou mesmo milhares. Há ilustrações de lutas com touros na Grécia antiga e em Roma. Na península onde se tornou tão popular (sobretudo no Sul, Ribatejo, Alentejo e Andaluzia, etc.) conhece-se desde o séc. XII. O que a ministra Graça Fonseca agora disse, já foi argumentado pelo Papa Pio V no século XVI que proibiu mesmo as touradas, e elas continuaram porque D. Sebastião (o de Alcácer Quibir) convenceu o Papa Gregório a revogar a medida. Outros momentos houve na história em que as corridas de touros foram proibidas, mas voltaram. Há qualquer coisa que as faz voltar e isso deve-nos fazer pensar. Assim como a diversidade cultural (afinal é um espetáculo essencialmente ibérico e de parte da ibero-américa) que não deveríamos extinguir.

Não faz sentido que o mesmo Estado que abre exceções em Barrancos e noutros locais, para existirem touros de morte, se encarregue de achar que elas são produto de uma civilização atrasada. Afinal, gente tão moderna tem as preocupações dos célebres conquistadores espanhóis e portugueses que diziam querer civilizar o mundo.

Quando se entra por esse caminho, jamais se deve esquecer que alguém em sentido contrário pode argumentar que certas atividades, práticas e opções são contra a civilização e dignas de punição.