Estados Unidos

Aquecimento global com Chicago a bater o dente? Sim, é possível

Chicago foi uma das cidades mais atingidas pela vaga de frio que assola o Midwest dos Estados Unidos, que obrigou ao cancelamento de mais de dois mil voos, bem como dezenas de ligações ferroviárias de e para aquela metrópole <span class="creditofoto">Foto Pinar Istekj / Reuters </span>

Chicago foi uma das cidades mais atingidas pela vaga de frio que assola o Midwest dos Estados Unidos, que obrigou ao cancelamento de mais de dois mil voos, bem como dezenas de ligações ferroviárias de e para aquela metrópole Foto Pinar Istekj / Reuters

Uma vaga de frio polar desencadeou uma série de medidas de emergência no Midwest americano. Nas próximas horas, poderão ultrapassar-se recordes de temperaturas baixas com mais de três décadas. Trump pergunta onde está o aquecimento global quando precisamos dele. Cientistas e agências governamentais explicam que uma coisa não invalida a outra. E, afinal, o que é o vórtice polar de que tanto se fala?

Texto Hélder Gomes

O glaciar Priestley, na Antártida, regista esta quarta-feira temperaturas superiores às da cidade de Chicago. Este dado pode ajudar a avaliar a dimensão e o impacto do frio extremo que se sente na região centro-oeste, o chamado Midwest, e nalguns estados do Leste dos EUA. Mas há mais: cerca de 212 milhões de pessoas serão atingidas por temperaturas anormalmente negativas nos próximos dias, o que representa mais de 70% da população americana afetada.

Os especialistas falam no ar mais frio numa geração e as autoridades aconselham a população a manter-se em espaços interiores e a dedicar especial atenção aos mais velhos e vulneráveis. Pelo menos cinco pessoas terão morrido desde domingo. Mais de dois mil voos foram cancelados, bem como dezenas de ligações ferroviárias de e para Chicago. O serviço de entrega de correio não será feito em dez estados e há registo de falhas de energia nalgumas zonas. Centenas de escolas foram fechadas, enquanto muitas cidades do Midwest abriram abrigos para a população se aquecer.

Tudo isto acontece por causa de um fenómeno conhecido como vórtice polar. Trata-se de uma corrente de nível superior que normalmente circula em torno dos polos Norte e Sul, mantendo o ar mais frio nos dois extremos do globo. Ocasionalmente, essa corrente enfraquece e perturba os padrões climáticos, libertando ar mais quente no Alasca e empurrando os ventos frios para zonas como o Midwest ou a costa leste norte-americana.

“NÃO SE PODE CULPAR AS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS”

Mas o fenómeno tornou-se mais frequente nos últimos tempos e, se sim, qual o efeito das alterações climáticas nestas vagas de frio? A comunidade científica divide-se. O meteorologista Jason Nicholls, da empresa de media AccuWeather, considera que “não se pode culpar as alterações climáticas pelo atual surto de frio nos EUA”. “É muito comum o vórtice polar enfraquecer, dividir-se e deslocar-se do polo. Ocorre todos os invernos e geralmente mais do que uma vez”, relativiza, em declarações ao Expresso.

Um termómetro assinalava esta manhã -30 graus Fahrenheit (-37 graus Celsius) em Minneapolis, no estado do Minnesota <span class="creditofoto">Foto CRAIG LASSIG / EPA</span>

Um termómetro assinalava esta manhã -30 graus Fahrenheit (-37 graus Celsius) em Minneapolis, no estado do Minnesota Foto CRAIG LASSIG / EPA

O local para onde o vórtice polar se desloca não é sempre o mesmo. “Na verdade, ao dividir-se, uma parte dirige-se para o Centro e Leste da América do Norte e a outra para a Rússia. O ar está ainda mais frio na Rússia do que na América do Norte”, reforça Nicholls. Ainda assim, na manhã desta quinta-feira, Chicago, no estado do Illinois, poderá bater o recorde de 33º Celsius negativos registado em janeiro de 1985.

CINCO MINUTOS BASTAM PARA SOFRER QUEIMADURAS

Nos estados do Minnesota e do Iowa, a principal preocupação é com as queimaduras de frio que podem ocorrer em apenas cinco minutos de pele exposta. As queimaduras são causadas pelo congelamento da pele e tecidos subjacentes, sendo mais comuns nos dedos das mãos e dos pés, nariz, orelhas, bochechas e queixo. Os casos mais graves podem matar tecido corporal. Os governadores de estados como o Illinois, Michigan e Wisconsin decretaram o estado de emergência. Há ainda a acrescentar que a sensação térmica é frequentemente inferior às temperaturas reais.

Foto KAMIL KRZACZYNSKI / EPA

Perante este cenário, o Presidente dos EUA, Donald Trump, perguntou no Twitter: “O que raio está a acontecer com o aquecimento global? Por favor, volta rápido. Precisamos de ti!”.

Esta não é a primeira vez que Trump se refere de forma jocosa às alterações climáticas provocadas pelo aumento da concentração dos gases de efeito de estufa. Em 2017, retirou os Estados Unidos do Acordo de Paris para a redução das emissões de gases com efeito de estufa. Também chegou a sugerir que as alterações climáticas eram uma farsa engendrada pela China para esta ultrapassar a economia americana.

AGÊNCIAS DO GOVERNO CONTRARIAM TRUMP

São muitas vezes as agências governamentais a contradizerem o Presidente. Na sequência daquele tweet, a Administração Oceânica e Atmosférica Nacional esclareceu que tempestades de neve como as atuais não refutam as alterações climáticas nem são incompatíveis com um clima mais quente. Alguns cientistas acreditam que as temperaturas mais altas no Ártico conduziram a níveis historicamente baixos de gelo, o que, por sua vez, o que pode estar relacionado com os desvios do vórtice polar.

A cientista Jennifer Francis sublinhou à agência Reuters que a massa de ar polar na América do Norte é largamente suplantada por outras zonas do globo que estão mais quentes do que o habitual. “Estamos a assistir [a estes fenómenos] com maior frequência e alguns estudos sugerem que o derretimento e aquecimento do Ártico tornam estas perturbações mais prováveis do que costumavam ser”, acrescentou a especialista do centro de investigação Woods Hole, no estado do Massachusetts.

POSSÍVEL EXPLICAÇÃO: VERÃO NO HEMISFÉRIO SUL

Seja como for, temperaturas mais altas nalgumas partes da Antártida do que numa cidade dos EUA continuam a parecer um dado preocupante e indiciar que vivemos efetivamente numa era de extremos. O meteorologista contactado pelo Expresso arrisca uma explicação para a inversão do cenário: “Pode ser porque o hemisfério sul está no seu verão, logo os dias são mais longos e a radiação solar é mais forte a sul do Equador nesta altura do ano.” “Provavelmente, os surtos de frio e a divisão e deslocamento do vórtice polar vão continuar a ser uma ocorrência comum no futuro”, concede Jason Nicholls, insistindo, ainda assim, que o movimento do vórtice todos os invernos torna difícil relacionar a recente vaga com as alterações climáticas.

Apesar das posições divergentes da comunidade científica, o melhor mesmo deverá ser consultar a previsão do estado do tempo (e os alertas) nas plataformas especializadas e não na conta de Twitter de Trump.