Chamem-me o que quiserem

Chamem-me o que quiserem

Henrique Monteiro

Recordações sobre o Estado laico

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A visita do Presidente da República à Cidade do Panamá, para assistir às Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ) organizadas pela Igreja Católica, causou alguma celeuma. É certo que Marcelo manifestamente se entusiasmou excessivamente com o anúncio pelo Papa (que aliás já sabia ele, como todos nós) de que em 2022 as JMJ seriam em Lisboa. Mas, daí a achar que o Presidente de um país laico não deve ou não pode estar presente num evento católico, é não compreender o que é um país laico.

Embora não seja representativa em termos de associados, a Associação Ateísta Portuguesa representa um pensamento relativamente comum entre a esquerda mais radical. E fez um comunicado em que aponta, a propósito da visita de Marcelo ao Panamá para as JMJ: “A título particular e a expensas próprias, caberia a esta Associação respeitar e ignorar tamanha devoção. Participar em jornadas da Juventude, onde manifestamente a idade não o recomenda, ir à missa e assistir à benzedura de um templo católico, é um assunto que a AAP ignoraria se o enviado fosse um membro da Conferência Episcopal, mas que considera um grave atentado à neutralidade religiosa do Estado laico, quando perpetrado pelo Presidente da República”. É difícil ser mais dogmático, sectário e, perdoe-se a ousadia, ignorante.

A reivindicação de um Estado laico, que vem dos tempos do iluminismo e foi, de início, combatido pela Igreja, é uma característica fundamental do desenvolvimento, da liberdade e da igualdade. Não pode ser posta em causa e a própria Igreja o defende. Mas é preciso saber o que significa um Estado ser laico. Seguramente não quer dizer que seja irreligioso ou antirreligioso. Apenas que é independente das vontades, regras ou ditames de cada religião. Acontece que Portugal até tem uma Concordata com a Santa Sé onde estabelece várias regras de relacionamento, justamente porque o Estado laico não impede o relacionamento do Estado com religiões. Presumo que tenha um acordo também com os ismaelitas, ou o centro Aga Khan não teria a importância que vai ter em Portugal. Não me recordo de se afirmar que cidade de Lisboa ficava menos laica ao ter ajudado à construção da Mesquita da Praça de Espanha e de outras, ou mesmo à presença do seu presidente atual, Fernando Medina, nas mesmas JMJ, onde aliás o secretário de Estado da Juventude também foi.

O que está errado nos ‘ateístas’ não é a sua fé na não existência de Deus, que é legítima. É pensar, como as Igrejas no passado pensaram, que os Estados têm de ter a mesma convicção que eles

As críticas a Marcelo não me parecem, pois, colher. Salvo num aspeto que a associação de ateus, não pode dizer: o que os irrita é Marcelo ser católico. É ir à missa. Como se um Presidente deixasse de ser o que é por o Estado ser laico.

Portugal é, verdadeiramente um Estado laico onde existe liberdade religiosa. É verdade que, por vezes, algumas religiões (e não a católica em especial) se esquecem disso. Mas neste país há liberdade de confissão e se os jornais noticiam mais as atividades da Igreja Católica Romana é por ela ser largamente prevalecente no país.

A mim, nunca me verão criticar quem quer que seja pela fé que professa. Criticar pelos atos é suficiente. E o que está errado nos ‘ateístas’ não é a sua fé na não existência de Deus, que é legítima. É pensar, como as Igrejas no passado pensaram, que os Estados têm de ter a mesma convicção que eles. No fundo, o Estado não seria laico, mas ateu.

Como nota de rodapé gostava de deixar claro que é preciso ter muito mais fé para negar qualquer possibilidade de um Ser Supremo existir, do que para colocar a hipótese da sua existência. O ateísmo é dogmático, porque não aceita outra posição; é sectário porque se coloca numa posição de superioridade moral em relação aos crentes (que no geral são considerados obscurantistas) e é ignorante porque não sabe exatamente o que significa a laicidade.

Eu, que não sou católico, penso que são um conjunto traumatizado por qualquer ocorrência pessoal relacionada com a Igreja. A católica, pois é dessa que eles se queixam sistematicamente. Muçulmanos radicais, por exemplo, não os incomodam particularmente. É curioso.

Eu, não católico, acho lindamente que as JMJ venham com o Papa a Portugal em 2022. E que celebrem a juventude, a paz e a harmonia. É este o espírito da fraternidade e tolerância, próprio de um Estado laico, que se opõe ao dogmatismo e sectarismo de quem não respeita os outros.