A tempo e a desmodo

A tempo e a desmodo

Henrique Raposo

Crianças com 18 anos

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A rasura sofrida pelo poema de Pessoa (“Ode Triunfal” de Álvaro de Campos) num manual de língua portuguesa é um buraco da fechadura sobre tudo o que está de errado na escola, no ensino da literatura e na forma como a sociedade por inteiro infantiliza os adolescentes. Estas pessoas estão à beira da maioridade (12.º ano) mas são tratadas como se tivessem seis anos. Os responsáveis pela rasura alegam que alusões ao sexo e à prostituição infantil podem causar desconforto aos alunos. A sério? Uma das funções da literatura é precisamente essa: inquietar, causar desconforto, atirar-nos para o frio.

Pessoas à beira da maioridade (12.º ano) não têm um atraso técnico (sabem ler), mas têm sem dúvida um atraso intelectual e moral na sua imaginação literária e até cívica. Um poema de Pessoa é uma ameaça, tal como uma opinião contrária

Alega-se ainda que a referência à prostituição infantil pode ser vista como um incitamento à pedofilia. Ou seja, são os próprios professores que confundem os planos de forma infantil: a moral do autor não é a moral do narrador; aquilo que o narrador acha belo (crianças a masturbar adultos) está na escala da narrativa, não na escala do cidadão. Ademais, esta é a frase que força a entrada do leitor no mal, no tal frio, é a frase que devia levar o professor a educar o olhar do aluno sobre o lado sórdido no mundo. A literatura é uma lente sobre o mal, sobre o nosso desassossego. Se tapamos a lente para não melindrar crianças com 18 anos, então fechem já a loja e repensem a forma como estão a (des)educar. Não estão a criar leitores, estão a criar futuros adultos que odiarão ler.

A infantilização do jovem adulto é pior do que a censura. É uma autocensura permanente <span class="creditofoto">Foto Marcos Borga</span>

A infantilização do jovem adulto é pior do que a censura. É uma autocensura permanente Foto Marcos Borga

No fundo, o que temos pela frente é uma espécie de iliteracia moral ou literária: pessoas à beira da maioridade (12.º ano) não têm um atraso técnico (sabem ler), mas têm sem dúvida um atraso intelectual e moral na sua imaginação literária e até cívica. Um poema de Pessoa é uma ameaça, tal como uma opinião contrária. A polémica abre-nos assim o leque para algo que é muito mais vasto: os pais e professores que assumem que jovens com 18 anos não têm maturidade para ler um poema duro são os mesmos que não não permitem que essas “crianças” entrem num velório ou funeral.