REINO UNIDO
Derrota para May no recomeço do debate do Brexit
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Parlamento reinicia discussão sobre a saída da União Europeia, mas acordo obtido pela primeira-ministra britânica está longe de ter condições para passar. Deputados recusam saída desordenada e levantam a voz ao Governo
Texto PEDRO CORDEIRO
O Parlamento britânico retomou, esta quarta-feira à tarde, o debate sobre a saída da União Europeia. O arranque da discussão – que a primeira-ministra adiou, em dezembro, por antever o chumbo do seu plano para o Brexit – foi aziago para Theresa May. A Câmara dos Comuns aprovou uma moção que encurta o prazo dado ao Governo para apresentar um novo plano caso os deputados rejeitem, como se prevê, o acordo alcançado entre Londres e Bruxelas. De 21 dias úteis parlamentares, passou para três.
A votação (308 votos a favor e 297 contra) foi iniciativa de Dominic Grieve, ex-procurador-geral e deputado do Partido Conservador (o mesmo de May), e teve o apoio de vários deputados da bancada do Governo. Outros deputados, apoiantes do Brexit, criticaram o speaker dos Comuns, John Bercow, por ter aceitado a moção de Grieve.
Na véspera, o Parlamento aprovara outra proposta do Partido Trabalhista que limita a margem de manobra financeira do Executivo em caso de saída da UE sem acordo. Também esta foi apoiada por 20 deputados conservadores, incluindo 17 ex-membros do Governo. Um deles foi a ex-ministra da Educação Nicky Morgan, que prometeu uma “guerrilha nos bancos verdes” contra uma saída desordenada, em referência à cor dos assentos na Câmara dos Comuns. “A única forma de evitar sair sem acordo é votar a favor do acordo”, diria May mais tarde, respondendo a perguntas do líder da oposição, o trabalhista Jeremy Corbyn.
Votação a 15 de janeiro
É na próxima terça-feira, 15 de janeiro, que se realiza a votação outrora agendada para 11 de dezembro. May protelou-a quando percebeu que a margem da derrota ficaria entre os 100 e os 200 deputados. Esperou conseguir duas coisas durante a quadra natalícia: obter cedências dos 27 que tornassem o seu acordo aceitável para mais deputados; e persuadir alguns destes de que não apoiar o plano era empurrar o país para a temida saída sem acordo. O Brexit acontece, legalmente e à míngua de mudanças, a 29 de março, às 23h.
Nada indica que May tenha sido bem-sucedida nestas frentes. O backstop irlandês – que estipula que, se não houver ou até que haja solução permanente para evitar fronteira entre a República da Irlanda (membro da UE) e a Irlanda do Norte (território britânico), todo o reino ficará alinhado com as regulações comunitárias – continua a parecer a muitos deputados, europeístas e eurocéticos, uma gaiola sem prazo, de que não se pode sair unilateralmente. E a UE repete vezes sem conta que o tempo para negociar acabou.
Londres e Bruxelas dizem não querer aplicar o backstop, mas a UE exige que ele esteja no acordo, para garantir que não volta a haver fronteira física numa terra que viveu a guerra, no século XX, entre protestantes e católicos. May prometeu aos deputados que seriam eles a escolher, se no fim de 2020 não houver uma nova relação estabelecida com a UE, entre adotar o backstop ou prolongar o período de transição.
Estratégia do medo
May jogou a cartada do medo, acelerando preparativos para a saída à bruta (embora diga não a desejar), mas ontem os deputados ataram-lhe as mãos, ou pelo menos os cordões da bolsa. Agora, espera que Bruxelas lhe dê garantias de que o backstop não será aplicado ou, se tiver de o ser, será estritamente temporário. O problema é que ninguém pode assegurar isso, dado que ele entra em vigor, ao abrigo do atual plano, caso o Reino Unido chegue ao fim do período de transição do Brexit, a 31 de dezembro de 2020, sem ter um acordo global com a UE que evite a fronteira entre as Irlandas.
A governante conservadora não descarta a hipótese, em caso de chumbo, de voltar a apresentar o seu plano aos deputados, com ou sem concessões europeias. Mas também poderá nada fazer, insistindo que a alternativa ao seu plano é o caos. Depois da votação desta quarta-feira, terá de declarar as suas intenções ao Parlamento, o mais tardar, no terceiro dia de atividade após o chumbo do seu acordo, caso este se confirme. Isto impede May de usar novos adiamentos para confrontar os deputados, já perto da data da saída, com tal dicotomia.
Uma dúzia de derrotas
A de hoje foi a 12.ª derrota parlamentar da primeira-ministra desde que subiu ao poder, em 2016. May – que começou a governar com uma maioria absoluta herdada de David Cameron, mas desbaratou a mesma numas eleições que convocou, sem a tal ser obrigada, em 2017 – já perdeu mais votações do que Tony Blair e Margaret Thatcher somados.
Corbyn exortou a governante a “dar a palavra ao povo”, convocando eleições antecipadas, por ter quebrado a promessa que fizera ao Parlamento de conseguir um acordo melhor, justificando assim o adiamento da votação em dezembro. “Não estará a primeira-ministra a trazer de volta exatamente o mesmo acordo que admitiu que seria chumbado há quatro semanas?”, perguntou. May acredita que é possível obter “mais clarificação sobre o backstop” e diz ainda estar a falar com os 27.
Sobre o mesmo assunto, o ministro para a Saída da UE, Stephen Barclay, anunciou hoje ao Parlamento que o acordo de May, a ser aprovado, sê-lo-ia com a condição de o Governo conseguir da UE garantias da natureza temporária do backstop e que as duas partes “tencionam” (o que não tem valor jurídico, é claro) conseguir outra solução no prazo de um ano; que o backstop só será adotado após aprovação parlamentar; que nesse caso o Executivo terá o dever, no prazo de um ano, de criar condições para ele deixar de ser necessário; que, caso ele seja considerado necessário, o Parlamento decidirá entre adotá-lo e prolongar a transição, como dissera May; que o Governo terá de explicar, em março de 2020, o que anda a fazer nesse sentido; e que as autoridades locais norte-irlandesas serão sempre consultadas.
Simon Usherwood, professor da Universidade de Surrey que o Expresso já ouviu a respeito do Brexit, considera que as promessas de Barclay são algo ocas. O académico explicou na rede social Twitter que o pouco que é credível nas promessas do ministro já está previsto no acordo de May e que, quanto ao resto, Londres não tem forma de obrigar Bruxelas a cumprir estas promessas nem pode impedir a aplicação do backstop, que é automática ao abrigo do acordo em questão. “Se alguns deputados forem conquistados por isto, o Governo que aproveite, mas haverá lágrimas antes da hora de deitar”, avisou Usherwood.
Novo referendo não está excluído
O drama da saída britânica na UE é que só há consensos negativos: há maioria parlamentar para rejeitar o acordo de May e também para recusar uma saída sem acordo. Não há maioria a favor de nenhum plano alternativo, como tem alertado a primeira-ministra.
Perante tal impasse e dada a vontade do Parlamento de recuperar algum controlo do processo ao Executivo, não se pode excluir um regresso às urnas, seja em legislativas antecipadas ou num novo referendo sobre o Brexit
Repetir a consulta é possibilidade que tem ganho partidários entre conservadores e trabalhistas, entre eurocéticos e europeístas. Mas também carece, por enquanto, de apoios suficientes. Faltam 79 dias para o Brexit.
Parlamento reinicia discussão sobre a saída da União Europeia, mas acordo obtido pela primeira-ministra britânica está longe de ter condições para passar. Deputados recusam saída desordenada e levantam a voz ao Governo