Chamem-me o que quiserem

Chamem-me o que quiserem

Henrique Monteiro

Dos direitos e deveres de Cavaco

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Uma questão interessante, talvez mais interessante do que as memórias do ex-Presidente da República, é tentar descortinar quais os deveres de um ex-Presidente da República. Qualquer ex-Presidente há de ter alguns deveres, uma vez que fica com alguns direitos – salário, motorista, secretária, gabinete. Ora, sendo eu totalmente favorável a que esses direitos existam, sustento que deve ter alguns deveres.

Um dos problemas que houve sempre em Portugal – e não apenas com políticos que desempenharam altos cargos – foi o de saber utilizar o conhecimento e experiência de quem passou por tais cargos. Cavaco, com 10 anos de primeiro-ministro e 10 anos de Presidente da República, há de ter alguma experiência. Tal não significa que todos se ponham acriticamente de acordo com o que ele diz (ou disse) e faz (ou fez). Mas algo se poderá aproveitar. Como, aliás, o próprio procedeu, por exemplo, em relação a Ramalho Eanes, embora menos do que poderia ter feito.

A mesma falta de integração, chamemos-lhe assim, se verifica em relação a outros altos cargos, desde logo aqueles que ocuparam chefias de Estado Maior nas Forças Armadas (e que têm de passar forçosamente à reserva, a maioria das vezes com idades que Vieira da Silva considera utilíssimas para o trabalho), mas também, como vimos ainda há pouco, cargos de grande distinção e competência no Estado que atingem limites de idade absurdos para o seu estado de saúde e faculdades intelectuais, como foi o caso de Francisco George na Saúde (ou seria o de Marcelo Rebelo de Sousa na Universidade, caso não fosse Presidente da República). Comecemos, então por aqui: terá Francisco George algum dever de reserva em relação aos muitos anos que passou na Direção-Geral de Saúde? Penso que sim. Por maioria de razão, tem qualquer ex-líder militar ou qualquer ex-Presidente um dever de reserva óbvio.

Mas esse dever tem de ser sopesado com um direito: terão estas personalidades o direito de deixar escritos os seus sentimentos, a sua ação, as suas opiniões sobre factos que, no passado, tiveram importância (desde que não revelem segredos de Estado ou outros a que estejam vinculados)? Também me parece que sim. E, entre deveres e direitos, como quase sempre, temos de traçar uma linha de bom senso.

Voltemos a Cavaco. Se é verdade, como dizem muitos, a começar pelo presidente do PS que ele mostra muita capacidade crítica e pouca autocrítica, não é menos verdade que Cavaco Silva foi, tem sido, e parece que continuará a ser uma espécie de saco de pancada para a maioria da esquerda. Jamais se viu Carlos César ou outro dirigente do PS (não falo do Bloco, por desnecessidade) chamar a atenção de militantes e dirigentes socialistas quando estes diziam (e dizem) de alguém que foi Presidente da República o que Maomé não diz do toucinho.

Toda a ação tem reação e talvez seja fastidioso voltar atrás e ver quem começou. Embora esta radicalização seja em si perniciosa.

Durante os 10 anos em que foi chefe do Estado, Cavaco Silva foi tratado pela esquerda como nunca a direita tratou um Presidente de esquerda

Porém, ainda Cavaco não era primeiro-ministro, já o então líder do PS, Mário Soares, anunciava que ele não tinha biografia para o ser. Soares, a quem sempre me ligaram laços de amizade que não são postos em causa por coisas destas, tratou sempre Cavaco como uma espécie de usurpador, apesar das duas maiorias absolutas. E se é verdade que lhe salvou o Governo quando Constâncio, então secretário-geral do PS, admitiu fazer uma espécie de ‘geringonça’ com o PCP e o então partido de Eanes, o PRD, foi essencialmente – podem crer – para salvar o PS e não para dar força a Cavaco.

Durante os 10 anos em que foi chefe do Estado, Cavaco Silva foi tratado pela esquerda como nunca a direita tratou um Presidente de esquerda (ressalvo Eanes, que na sua reeleição foi bastante miseravelmente tratado por alguma direita).

Nada disto confere direitos especiais a Cavaco. Foi a vida. Mas se, em parte concordo que um ex-chefe do Estado deve ter cuidado especial na forma como apresenta as suas memórias, não posso deixar de dizer que o presidente do PS deve ter mais capacidade autocrítica. Uma falta que ele, precisamente, aponta a Cavaco.

Aproveito para dizer que não li o livro que hoje será lançado. Mas do que já foi divulgado na comunicação social não notei qualquer mentira. Há considerações com as quais posso ou não concordar (existem dos dois tipos). E, embora tenda para os que consideram que a forma revela um sentido de Estado pouco elaborado, não ficaria bem com a consciência caso não dissesse que os anos em que o Presidente esteve calado, muitos dos que agora o criticam mostraram bem menos cuidado com o então Presidente do que agora reivindicam que ele tenha.