Opinião

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Pedro Santos Guerreiro

Poema castrado, não

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O que Almada saltaria com isto, fazendo desta brasa de três versos uma fornalha crematória de académicos antiquários de si mesmos. Dar a Ode Triunfal ao estudo sem 3 dos seus 240 ossos não é deixá-lo com 237, é fazer-lhe uma cirurgia plástica ao corpo. Não desfigura, reconfigura, debaixo de uma luz estética e usando um x-ato moral. Querem o poeta a fazer de jarra na sala de aula, querem o poema a servir de teorema para meninos de oito anos. O que estão a fazer os "pândegos" e as "putas" dentro daqueles automóveis, o que estão a fazer aqueles homens de aspeto decente masturbados nos vãos de escada? Estão lá para o contrário do que parece.

Falar de censura no caso do manual de português do 12º ano é uma desmesura, não pelo ato mas pelo efeito. Não é uma decisão perigosa nem fere Pessoa, porque o golpe oblitera-lhe a página mas não lhe fura a pele. É só uma decisão ridícula. Pelo século em que estamos e pela idade dos alunos, claro, mas sobretudo porque é infantil profanar para supostamente desprofanar a Ode Triunfal. Ou se dá ou se não dá. Dê-se.

O corte não é uma decisão didática, é uma decisão moral sobre uma obra de arte. O corte amputa a integralidade (e a integridade) do poema. O corte redu-lo, não na dimensão, mas nessa quimera sempre infinda pelo significado. Se uma palavra choca, uma palavra choca. Às vezes de frente, outras vezes escondida. Mas não se amputa nem depila como bonecona para acoito.

Em entrevista publicada no sábado ao Expresso, o escritor Javier Marías responde: “Agora criticam-se os conteúdos dos romances! Há uns anos, estava eu a conversar com uma amiga editora sobre o meu livro anterior, 'Assim Começa o Mal', e às tantas ela disse-me: 'A ver se da próxima vez crias mulheres menos submissas.' É verdade que havia um marido que maltratava verbalmente a mulher, mas o que diremos então de Faulkner, que na primeira cena do 'Santuário' colocou um indivíduo a violar uma mulher com uma maçaroca de milho? Deixamos de ler Faulkner?” Deixamos de ler a Ode Triunfal? Ou a Ode Marítima, que Harold Bloom inclui no "Cânone Ocidental"? Queimamos “A Morte em Veneza” de Thomas Mann, erradicamos Nobokov? Rasuramos nas mesmas escolas a Brízida Vaz do “Auto da Barca do Inferno”, por levar “seiscentos virgos postiços” e criar “meninas para os cónegos da Sé”?

É uma ironia talvez grossa que a Ode Triunfal acabe cortada em manuais escolares por causa de “putas”, “pândegos” e masturbação. A Ode sexualiza uma luxúria com as máquinas, com as fábricas, com as pontes, “possuo-vos como a uma mulher bela”, escreve Campos, que num crescendo de êxtase (ou orgástico) “podia morrer triturado por um motor / Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída”. Esta sexualização não é sexualidade, antes a volúpia do futurismo com o progresso, num texto evidentemente inspirado em Marinetti mas talvez contra ele (já lá vamos). Pessoa é aliás pouco sexual na sua escrita (há exceções, como o poema Epithalamium, e não são boas: “Tocar primeira vez nos pelos do ventre /E apalpar a labiada toca, /Fortaleza feita só pra ser vencida,/ Pela qual ele sente tumescer e prurir o aríete”). Há milhares de análises sobre os futuristas e a mulher e o sexo, mas Pessoa é indisfarçadamente não pregador da causa nem da coisa. António Lobo Antunes chegou a tratá-lo como um escritor eunuco, dizendo, em entrevista ao El País, que Pessoa foi um “hombre que jamás ha follado” e afirmando que Álvaro Campos era uma cópia de Walt Whitman. Não é uma tese original, embora retorça a original. A original, que se refere aos "primeiros anos" de Campos, é de João Gaspar Simões e seria adaptada e explicada por Eduardo Lourenço, que de caminho escreveu sobre “o horror ao sexo” e a “sexualidade branca” de Pessoa.

Eduardo Lourenço, que ainda esta semana foi (justissimamentementemente) premiado, escreveu sobre a Ode Triunfal em “Fernando Pessoa Revisitado” (1973) (e em "Tempo e Poesia"), com uma análise que disputa o reverberante eco futurista na Ode Triunfal. Pelo contrário, Lourenço chama-lhe “pseudo-Ode Triunfal”, porque significa o contrário do que diz: Campos não é o cantor da Máquina, antes entoa um cântico que na verdade esconde o seu íntimo contrário. E se isto se aplica ao fascínio modernista pela máquina, aplica-se também à “gente ordinária e suja (…) cujas filhas aos oito anos — e eu acho isto belo e amo-o! —/Masturbam homens de aspeto decente nos vãos de escada”: tal é, para Lourenço, uma “dostoiewskiana piedade pelos ‘humilhados e ofendidos’” da parte de Pessoa/Campos, “que a sua consciência infinitamente vulnerável tantas vezes fingiu virar do avesso, num cinismo pseudonietzschiano que leitores apressados e unilaterais não lhe perdoaram”. Não é a gente suja, mas sim os homens de aspecto decente, os submetidos ao verso. Afinal, este poeta psicografou-se como um fingidor.

Não é uma análise de um estudioso, é a opinião de um leitor: cortar três versos da Ode é uma castração química feita por cientistas amadores. Adaptando um famoso poema de Ary dos Santos, façam da Ode Triunfal as leituras mais superficiais ou mais profundas, mais futuristas ou pseudo-futuristas, façam tudo o que quiserem: mas poema castrado, não.