Reino Unido

Brexit. O impacto muito incerto de um chumbo mais que certo

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Debate parlamentar em curso confirma que não há maioria a favor da proposta de Theresa May para o Brexit. Bruxelas prepara-se para reabrir conversações com o Reino Unido para evitar saída caótica

Texto Pedro Cordeiro, enviado a Londres

“É factualmente impossível sairmos da UE a 29 de março.” Estas graves palavras do deputado Kenneth Clarke, proferidas esta terça-feira à tarde no debate sobre o Brexit no Parlamento britânico, em tom meio de aviso, meio de profecia, ilustram o impasse que marca este dia decisivo para a saída do Reino Unido da União Europeia. O membro mais veterano da Câmara dos Comuns (“Pai da Câmara” é o título informal de Clarke) é respeitado pelos seus pares. É também um dos mais europeístas, tendo defendido esta terça-feira a revogação do artigo 50, invocado pela primeira-ministra há dois anos para desencadear o processo.

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O debate arrancou à hora do almoço. Horas antes já se acumulavam à porta do Palácio de Westminster, sede do Parlamento, manifestantes das mais diversas tendências. Dos que querem travar o Brexit aos que defendem a saída sem acordo, passando por apoiantes de um ‘Brexit’ mais suave, que mantenha o país em maior sintonia com os 27. Todos defendiam os seus pontos de vista pacificamente, por vezes com bonomia recíproca. Une-os o repúdio pelo acordo que a primeira-ministra, Theresa May, conseguiu com a União Europeia.

O Expresso só viu, nas largas dezenas de pessoas com quem se cruzou, uma apoiante clara do documento que vai esta terça-feira a votos. “Salvem o acordo!”, suplicava o cartaz de Linda Sellers, que explica: “O que vai hoje a votos é isto”. Que é como quem diz, a relação futura entre o Reino Unido e os parceiros europeus é matéria para discutir depois. A sua prioridade é evitar uma saída à bruta. “Podemos sair da instituição política mas manter a ligação económica”, afirma.

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Ramsay Peeke está de acordo, mas só em parte. “Eu votei a favor da entrada na CEE [num referendo em 1975, dois anos após a adesão britânica], mas não da UE! E ficaremos muito bem fora dela”, antevê este septuagenário. Ato contínuo, invetiva um homem que ergue bandeiras europeias: “Não sabe o que é a democracia?” Este não se altera, mas responde: “Foram os contratos que consegui em vários países europeus que puseram comida no prato dos meus filhos. E vocês querem tirar-me isso!”.

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Não muito longe, em Whitehall, a artéria onde ficam os ministérios, Robert Mackenzie mostra um cartaz que pede a quem passa de carro que “apite pela saída”. Conta que “80% apitam” (estatística não confirmada pelo Expresso nos dez minutos que ali esteve), incluindo motoristas que estão proibidos de o fazer, como os que conduzem autocarros, táxis com passageiros ou veículos com logotipos de empresas. Não o preocupa nada uma putativa saída da UE sem acordo. “Que mal tem se as taxas comerciais aumentarem um pouco? Nós compramos mais à UE do que ela a nós, pelo que acabará por haver acordo comercial. E acresce que eles nos vendem mais bens, enquanto nós exportamos sobretudo serviços.”

Chumbo é o mais provável

A votação do acordo e de quatro propostas de emenda ao mesmo culmina cinco dias de debate sobre o ‘Brexit’ e os seus termos. À hora de fecho desta edição do Expresso Diário, tudo indicava que o documento ia ser rejeitado, com dezenas de deputados do Partido Conservador (de May) a juntarem-se a quase toda a oposição (trabalhistas, liberais, nacionalistas escoceses e galeses e verdes) e mesmo ao Partido Democrático Unionista da Irlanda do Norte (DUP), que sustenta o Executivo minoritário.

A Irlanda é o principal obstáculo à aprovação do acordo. O acordo debatido esta terça-feira contém uma disposição para evitar que volte a haver fronteira física numa ilha que conheceu sangrentos conflitos entre católicos e protestantes no século XX — o chamado backstop —, que exige que “a não ser que e até que” haja um acordo global sobre a nova relação UE/Reino Unido que evite tal fronteira (a única terrestre entre a UE e o Reino, no futuro), o país permanecerá em união aduaneira e regulatória com a UE e a Irlanda do Norte alinhada com o mercado único.

Quer o Governo britânico quer as instituições europeias asseguram não quererem chegar a aplicar esta solução de recurso, a qual, a ter de entrar em vigor, seria sempre temporária. Mas o acordo não prevê uma duração máxima com força jurídica para o backstop nem permite que o Reino Unido saia dele unilateralmente. Uma troca de cartas entre May e os presidentes da Comissão Europeia e do Conselho Europeu, Jean-Claude Juncker e Donald Tusk, nada fez para aplacar os críticos.

Centeno admite renegociação

A disparidade de pontos de vista à porta do Parlamento espelha a que impera lá dentro. Certos deputados diziam ir votar contra a proposta de May por acreditarem que é possível travar o Brexit, outros porque o querem mais duro, outros mais suave. Menos claro é que haja consenso entre os detratores quanto ao que deve substituir o acordo. Note-se que não há um leque de opções em igualdade de circunstâncias: se nada acontecer, é a saída sem acordo que está legalmente consagrada por mero efeito do tempo. E o prazo é 29 de março às 23 horas.

Foi isso que fez o deputado Jim Fitzpatrick ponderar um voto favorável à proposta de May. “Sair sem acordo seria terrível”, diz este trabalhista ao Expresso, numa cafeteria do Parlamento que fervilha de atividade. Pelas mesas espalham-se, à conversa, jornalistas britânicos e estrangeiros e políticos de vários quadrantes. A imprensa mundial esforça-se por perceber o sistema político do Reino Unido, baseado em convenção e sem Constituição escrita.

“Acabei por decidir votar contra o acordo, que em todo o caso não tem qualquer hipótese de passar”, adianta Fitzpatrick, que ainda assim admite rever a sua posição se May voltar a submeter o documento aos Comuns, dentro de dias, após o provável chumbo.

A primeira-ministra não exclui esse cenário, que pressuporia alguma cedência da UE ou simples crença de que o tempo e o receio farão vergar alguns deputados. Por ordem do Parlamento, adotada na semana passada, se hoje for derrotada May terá de explicar o seu “plano B” até 21 de janeiro.

É possível que a governante se desloque já esta quarta-feira a Bruxelas. Juncker cancelou a sua presença numa cerimónia em França e Michel Barnier, que liderou as negociações do Brexit por parte da UE, prevê falar esta terça-feira ao telefone com vários dirigentes dos 27, informa o diário “The Daily Telegraph”, citando fonte parlamentar.

O presidente do Eurogrupo, Mário Centeno, não põe de lado uma reabertura de conversações para evitar a saída sem acordo. “Para saídas caóticas, normalmente, não estamos preparados”, disse esta terça-feira, em Estrasburgo, à correspondente do Expresso, Susana Frexes. À margem da celebração dos 20 anos do euro, o também ministro das Finanças português pensa que “é evidente que tem de haver um acordo, seja este acordo ou outro acordo”. Mas não diz qual.

Emendas difíceis de aplicar

As emendas que esta terça-feira vão a votos tentam influenciar o que se segue. Uma vem do Partido Trabalhista e estipula que se deve “explorar todas as opções” que não signifiquem sair sem acordo ou sair com base no acordo de May. Outra, apresentada pelo Partido Nacional Escocês, diz o mesmo e acrescenta o adiamento da aplicação do artigo 50 do Tratado de Lisboa, prorrogando a saída.

Note-se que para impedir um Brexit sem acordo não basta que o Parlamento aprove uma moção ou emenda a rejeitá-lo. Tem de haver alternativa. Uma possibilidade seria os deputados realizarem uma série de votações indicativas sobre as várias hipóteses após o chumbo previsível do acordo.

Uma terceira emenda, sugerida pelo conservador Edward Leigh, acrescenta um limite temporal ao backstop norte-irlandês, caso seja adotado, até 1 de janeiro de 2022. A do seu companheiro de partido John Baron exige “alterações” ao acordo e à solução da Irlanda do Norte, nomeadamente permitindo a saída unilateral do Reino Unido do backstop. Estas duas emendas levantariam questões jurídicas, já que o acordo com Bruxelas está firmado e os 27 não parecem dispostos a renegociá-lo a fundo. “May ficaria numa posição difícil”, afirma fonte parlamentar ao Expresso.

Fora do debate ficou, por vontade do speaker dos Comuns (que tem poder discricionário na matéria), uma emenda dos Liberais Democratas a pedir segundo referendo. Havia outras nove, que John Bercow tampouco selecionou. Mas tal não impede taxativamente, como veremos, uma nova consulta popular.

Moção de censura pode vir esta terça-feira

Os resultados das votações devem ser anunciados depois das 20h esta terça-feira. A confirmar-se o fracasso de May, Jeremy Corbyn pode apresentar imediatamente uma moção de censura. O líder trabalhista, que há muito deseja eleições antecipadas, considera que uma derrota esta terça-feira à noite equivale à perda de confiança do Parlamento no Executivo. Se Corbyn apresentar hoje a moção, ela é discutida e votada esta quarta-feira, mas não parece existir maioria para a aprovar. Se passasse, o Governo cairia e os partidos (primeiramente o conservador) teriam 14 dias para tentar formar outro, caso contrário o país voltaria às urnas.

Menos clara é a posição dos trabalhistas em relação ao Brexit. A maioria dos militantes e deputados preferia ficar na UE, mas o líder, que em 2016 fez campanha tímida pela permanência no referendo, ainda não se declarou pela reversão do processo, aceitando nova consulta apenas se não for possível convocar legislativas. “Corbyn e o ministro-sombra das Finanças, John McDonnell, pertencem a uma velha esquerda muito protecionista e nacionalista”, explica Fitzpatrick.

“Até agora o partido ainda não teve de exprimir uma posição clara”, reconhece Fitzpatrick, ele próprio dividido entre seguir a vontade dos seus eleitores (o círculo de Poplar e Limehouse, que representa, votou esmagadoramente por ficar na UE). Recorda que o programa eleitoral dos trabalhistas nas eleições de 2017 incluía o respeito pelo resultado do referendo de 2016, daí que não se sinta “ainda persuadido” a apoiar a sua repetição.

Um novo referendo exigiria um adiamento do Brexit, pois legalmente só poderia ser marcado para daqui a meses. Também seria complexo decidir que pergunta fazer e que hipóteses (sair sem acordo? sair com o acordo de May? não sair?) estariam no boletim de voto. Protelar a saída da UE também levanta questões: se fosse para lá de julho, o Reino Unido poderia ter de votar nas eleições europeias de maio próximo.

Se houver eleições antecipadas (e note-se que mesmo uma queda de May não obriga a tal, pois o Partido Conservador pode tentar formar novo Executivo após escolher um líder), tudo muda: o Partido Trabalhista tem de redigir um programa que inclua uma política europeia. Preveem-se, nesse caso, entre uma liderança esquerdista e algo eurocética e uma ala que Fitzpatrick diz vir dos tempos de Tony Blair, que deseja manter o país na UE.

O debate prosseguia, à hora de fecho deste Expresso Diário, com o speaker a reduzir o tempo das intervenções de cinco para três minutos, tal o número de deputados inscritos para intervir. À porta do Parlamento, num eco caricato do labirinto em que o Reino Unido se vê, duas seitas evangélicas tentavam angariar fiéis. “Não ponham assuntos secundários à frente de Deus”, exortava uma. A outra era mais pragmática: “Com ou sem ‘Brexit’, salvem as vossas almas!”.