TEATRO

Luís Lobianco

“No Brasil morrem Gisbertas todos os dias e nada acontece”

Luís Lobianco é um dos atores de comédia mais aplaudidos no Brasil desde que o projeto de humor Porta dos Fundos rebentou na internet como um sucesso planetário. O que o traz desta vez a Portugal é uma peça de teatro sobre a história da Gisberta, a mulher transexual assassinada no Porto em 2006 por 14 menores. No seu espetáculo, quanto mais se ri mais se chora. É trágico mas também é cómico. “Porque o humor e a gargalhada salvam. E iluminam”

Entrevista Bernardo Mendonça Fotos Aline Macedo

Porque é que escolheu levar a palco a história da Gisberta? Sei que a descobriu por acaso a partir do tema “A Balada de Gisberta”, da autoria de Pedro Abrunhosa, mas na voz de Maria Bethânia…

Há muito que eu procurava um motivo para continuar a vir a Portugal, desde que há cinco anos comecei a trazer o meu trabalho cá. Não sabia o que queria contar. Estava a buscar, lendo espetáculos, vendo filmes. Mas nada me batia, me emocionava ou me fazia gargalhar. E aí por acaso, há dois anos, estava de férias com a família em Teresópolis, no Brasil, e escutei a música cantada pela Maria Bethânia, que estava na minha playlist. Uma música lindíssima. Eu já sabia cantar a música, mas não sabia a história dela. E ali, de férias, parei para procurar na internet se havia realmente uma Gisberta. E aí fiquei superemocionado. Primeiro porque nesse dia, por coincidência, fazia dez anos que o assassinato da Gisberta tinha sido cometido. E eu interpretei isso já como sinal de alguma coisa. Então ouvi novamente a música já lúcido da história que estava por detrás dela....

Que frase da letra dessa música mais o tocou?

Ah, “o amor é tão longe”. É muito forte. Fico todo arrepiado quando falo. E ali, naquele momento, as férias acabaram, comecei logo a trabalhar no projeto. A primeira coisa que observei é que havia muito material de reportagens em Portugal sobre o caso, pelos 10 anos passados [desde o seu assassinato], mas nada havia no Brasil.

Era uma história desconhecida no Brasil, apesar se de ter passado com uma cidadã brasileira…

Sim, e ainda é muito desconhecida. Mas pela música da Maria Bethânia, e agora com o meu espetáculo, a Gisberta veio mais à tona. Mas mesmo assim ainda dentro dos grupos de ativismo, LGBT, a classe artística, a gente tem essa missão…

O que o agarrou mais nesta história trágica da transexual Gisberta? A transfobia, o ódio, ou mesmo a personagem Gisberta, a sua personalidade?

A própria personagem Gisberta. Ela era uma artista que, assim como eu, veio buscar arte aqui para Portugal. Por sermos [ambos] diferentes e por ela estar muito mais em risco devido à transgeneridade, ficou muito mais exposta do que eu e as consequências foram aquelas que a gente conhece. Por eu ser um artista LGBT, faço trabalhos LGBT nos meus projetos pessoais há algum tempo. Por exemplo neste momento tenho dois projetos sobre essa temática em cena no Rio de Janeiro, na região da Lapa. Que é a região de prostituição e marginalidade, mas também de muita força criativa e mais democracia. Um lugar onde as pessoas conseguem viver mais harmoniosamente.

Em palco não representa a própria Gisberta…

Não. Na verdade, dramaturgicamente eu nunca quis assumir uma personagem. Fosse a Gisberta ou qualquer outra. Ou seja, eu não queria viver Hamlet, não queria viver Gisberta. Queria contar uma grande história. E a Gisberta é uma história real. Ela é uma grande história. Desde a sua infância. Na fase da pesquisa cheguei a tomar contacto com a família dela e conheci o seu percurso até o seu auge aqui em Portugal. Ela foi por 10 anos a estrela brasileira da noite portuense. Ela era a Daniela Mercury do Porto. (risos) E depois teve aquele final, que é absolutamente chocante. E ainda, depois da sua morte, vejam-se as transformações e consciencializações que ocorreram na sociedade portuguesa que ela conseguiu promover involuntariamente. No Brasil morrem Gisbertas todos os dias e nada acontece...

Disse que é um artista LGBT. O que quer transmitir com a sua arte em palco?

Ao me colocar como ator LGBT assumo que sou um ator gay, e isso é um ato político e não é comum. Muitos atores LGBT não falam sobre isso [da sua orientação sexual] porque querem preservar a sua privacidade, os contratos e papéis, para não ficarem limitados. Você se coloca em risco quando se assume.

A homofobia existe também no meio artístico brasileiro? Pode retirar papéis a artistas, rotula e pode cortar carreiras?

Com certeza. Há 10 ou 15 anos, se um ator falasse publicamente da sua homossexualidade, as suas relações, os seus amores, invariavelmente só faria papéis de gays. E eu fui percebendo que quanto mais atores falavam sobre isso, mais o mercado tinha que se abrir. Para mim é importante colocar essa questão, mas não gosto de me expor, não gosto de falar nada além do que é o meu trabalho. Até porque o que interessa são as minhas personagens. Mas sempre abro um caminho para as pessoas verem que sou um ator gay que posso realizar vários projetos. O meu marido está ali ao fundo agora, ele faz parte do espetáculo. A trilha original do espetáculo é dele. Para mim é muito importante quando vou a eventos e estreias, é importante estar com ele. Assim como os meus amigos que são heterossexuais vão com as suas esposas e maridos.

O Brasil vive atualmente um momento político difícil. O vosso Presidente, Jair Bolsonaro, assumiu publicamente por várias vezes ser homofóbico e intolerante com a comunidade LGBT, além de racista, misógino, elitista, promovendo o ódio em nome de promessas por uma suposta ordem e luta contra a corrupção. E, quanto a isto, junto uma frase que chegou a dizer sobre esta peça: “Quando mais ódio, mais a afirmação da identidade se impõe”. Mais do que nunca uma história como a da Gisberta tem de ser urgentemente contada em palco?

Quando estreámos esta peça [há um ano e meio] havia a remota possibilidade desse homem ser eleito. Ninguém acreditava. Alguns setores da classe artística e de movimentos sociais minimizavam o risco dele se eleger. Mas eu acho também que conforme o debate sobre orientação sexual e identidade de género vai avançando também paralelamente existe uma reação muito grande de quem tem os seus privilégios. Esse senhor, de quem eu evito falar o nome…

Também referido como #ocoiso #elenão...

Esse. Ele representa também uma reação de setores da sociedade que querem garantir os seus privilégios e se sentem ameaçados nesses debates. A rejeição ao partido PT devido aos casos de corrupção que dentro dele aconteceram, na verdade serve de álibi para muita gente que quer manter os seus direitos. Não querem perder os privilégios sociais que vêm de 500 anos de existência do Brasil. A abolição da escravatura no Brasil ainda é muito recente. E a estrutura social ainda é muito parecida com o Brasil da escravidão.

A tensão nas ruas aumentou? A comunidade LGBT está particularmente insegura neste momento?

Muito. Eu faço há seis anos o espetáculo “O Buraco da Lacraia” na zona da Lapa, no centro do Rio de Janeiro, que é a região boémia que sempre contemplou todas as existências e orientações. E esse espetáculo é um cabaret musical, com muito humor, mas muito político. E hoje as pessoas têm medo de caminharem para casa sozinhas, de ficar na esquina para apanhar um táxi, de manifestar afetos. Porque esse homem, que foi eleito, faz aflorar um sentimento muito ruim dentro das pessoas. Ele cria uma narrativa de que a culpa do que está acontecendo é porque os valores morais foram perdidos. E nós gays, artistas, e pessoas que pensam a liberdade, somos considerados inimigos deste país. Tanto que eles [os que estão do lado do Bolsonaro] tomam para a narrativa deles a imagem da bandeira do Brasil. Como se nós fossemos contra o Brasil.

É nestes momentos que a arte deve ter um papel subversivo, educador, ser uma arma de contra poder?

Por excelência a arte já faz esse papel. Juntar pessoas no mesmo ambiente, num teatro por exemplo, para que comunguem numa manifestação artística, é uma atitude política.

Mas há espetáculos inócuos, com pouca reflexão…

Sim. E há espetáculos inclusivé pró-esse senhor. Costumo dizer no final dos meus espetáculos que é muito corajoso que o público esteja ali. Porque é corajoso sair de casa à noite hoje no Brasil, com uma violência sem precedentes. No Rio de Janeiro, é demais. Se você tomar uma roupa, sair para a rua e chamar um táxi está correndo um risco. Hoje sair de casa sem ser para trabalhar, e ir assistir a uma peça de teatro já é um ato político.

Ao levar a história da Gisberta a palco quer ajudar a mudar a realidade do país, a mentalidade das pessoas?

Eu acredito que este espetáculo consegue mudar a cabeça das pessoas. É uma história muito popular. Uma coisa que eu sempre coloco no meu trabalho é que a comunicação deve ser direta ao coração do público. Tem muito teatro e cinema feito só para a classe artística, por militância, ou para ninguém entender, para que pareça muito interessante. Esta é uma história contada de uma forma muito popular. Como se você estivesse na cozinha da minha casa e eu a preparar alguma coisa e a contar a história.

A história da Gisberta tem um enredo dramático. Em palco também?

Tem. E tem humor. Eu trabalho com humor. Eu não queria deixar de tratar a parte trágica, mas não queria negar-me como artista. Porque o humor faz parte de mim.

Chora-se e ri-se na sua peça?

Sim. E quando mais se ri mais se chora.

Há uma frase muito forte que chega a dizer em cena: “Não me deixem esquecer que, para uma pessoa como eu, viver é um fenómeno de resistência.”

Isso. Crio um círculo de personagens que observam a Gisberta, desde pessoas da família, que interpreto e falam sobre ela, personagens fictícias, ou pode-se ouvir mesmo trechos do processo. Partilho também histórias minhas, e a forma de como vejo a Gisberta.

Como define o seu espetáculo, que até tem músicos em cena?

É um espetáculo popular, com música, poesia e tragicomédia.

Como na vida?

Como na vida. Quando eu fui conhecer a família da Gisberta estava muito nervoso, porque o caso é muito recente. Estive em casa das suas irmãs, dez anos após a sua morte. E o que eu encontrei foram pessoas absolutamente bem humoradas e positivas.

O que mais reteve das histórias que essas irmãs contaram sobre a Gisberta?

Muitas histórias de infância. Muito engraçadas. Quando cheguei havia uma mesa grande com retratos, cartas, recortes de revista, imagens de Marilyn e de outras atrizes de Hollywood, que ela colecionava. Peças de roupa com muito brilho. Tudo o que elas contavam era muito lúdico. Contaram-me que a Gisberta era muito especial, muito engraçada, como era agregadora, como cantava, as suas histórias, o seu lindo sorriso e o seu lindo cabelo. Mas no segundo seguinte elas lembravam de alguma coisa do fim, da tragédia, e vinha o choro. O tempo todo era entre lá e cá. Riso e choro.

Esta é uma peça tragicómica. Mas o seu lado cómico é o mais conhecido por causa do projeto de humor “Porta dos Fundos”, que o tornou um dos atores de comédia mais aplaudidos. Como é que surgiu esse projeto tão disruptivo, a criar um novo palco para os atores, o Youtube?

O “Porta dos Fundos” começou há seis anos. Éramos um grupo de artistas que não se conseguia encaixar no sistema das televisões. Todos nós tínhamos já um grande circuito feito no teatro. Eu já o fazia há 20 anos nos palcos dos teatros alternativos. Não por escolha, porque obviamente eu queria receber um salário, mas em nenhum lugar a gente se formatava. E, num certo momento, a gente reconheceu algo em comum, uma afinidade, e formámos esse grupo.

Isso é extraordinário.. Não existe nenhum fenómeno comparável desses por cá em Portugal. Temos os Gato Fedorento, mas as suas histórias são diferentes. Vocês mudaram as regras do jogo no Youtube...

A gente não tinha a pretensão de gerar bilhões de visualizações na internet. Fomos para o Youtube porque era a única plataforma que estava aberta. Os sócios do canal chegaram a levar o projeto “Porta dos Fundos” para as televisões, mas as televisões negaram. Não quiseram. Não se interessaram. Mas a internet, aberta e democrática, deu-nos o espaço. E no ano seguinte, depois da “Porta dos Fundos” se ter estabelecido na internet, as televisões interessaram-se.

Tudo mudou nas suas vidas?

Tudo. Eu até então era só um ator de teatro com todas as adversidades. No segundo mês de “Porta dos Fundos” eu já tinha cinco convites para cinema e televisão. Mudou a minha vida. No ano seguinte já estávamos em Portugal a trabalhar. Tudo era novo. Tudo tinha um sabor de felicidade imensa.

Através da “Porta dos Fundos” entraram pela porta da frente das televisões e do cinema. É um projeto para durar?

Sim. Eu não estou mais lá. Porque fui para a Globo fazer uma telenovela, o “Segundo Sol”, uma história passada na Bahia. Sou o irmão do protagonista. E represento uma personagem tragicómica.

Qual o seu sketche preferido?

Gosto muito do “Trago a Pessoa Amada”. Porque no Brasil as religiões afrobrasileiras são muito fortes e têm muito humor. São religiões com muito jogo de cintura e arquétipos engraçados. Sou agente de um anjo que faz uma feitiçaria para trazer pessoas amadas a alguém que pede por encomenda. Até hoje as pessoas comentam muito esse.

É daqueles que encontra sempre um lado cómico para tudo, mesmo nas situações mais dramáticas, na vida pessoal?

Sim, a minha busca por essas personagens mais tragicómicos, só acontece porque a minha vida é assim. Eu perdi a minha mãe biológica muito cedo, tinha cinco anos. E posso-te dizer que o humor me salvou. Porque eu era o que criava coisas, e contava histórias, e inventava histórias. Foi uma tática de sobrevivência trazer o humor para a minha vida.

O humor e a gargalhada salvam?

Salvam, porque a gargalhada ilumina. Houve no Brasil, neste ano eleitoral, uma tentativa de alguns políticos censurarem piadas com políticos e houve um movimento de alguns humoristas brasileiros que conseguiram barrar essa iniciativa. Por isso. Se nesse ano tão difícil não tivéssemos nem o humor, para fazer uma reflexão e apontar e criticar esses senhores seria insuportável.

Mesmo com Bolsonaro resistirão?

Resistiremos. Vamos ver como. Mas resistiremos. É perigoso e há muita manipulação de informação, pelas “fakenews”, dando conta que os artistas são aproveitadores e recebem dinheiro de políticos da esquerda e enriquecem por isso. Enfim. Mas estamos lá, firmes e fortes na luta.

O espetáculo “Gisberta” estará em cena no Teatro Sá da Bandeira, no Porto, nos dias 27 e 28 de novembro, às 21h. E no Teatro Tivoli BBVA, nos dias 5 e 6 de dezembro, às 21h.