Como eu ganhei o Euromilhões no SNS
Mais do que a cicatriz que atravessa a metade esquerda da minha cabeça, a marca mais profunda dos dias passados chegou com a certeza do médico: “Bernardo, já não precisas de jogar no Euromilhões, saiu-te o primeiro prémio”. Apesar da gravidade da situação, os resultados do laboratório afastavam o pior cenário. Em situações limite é difícil encontrar alívio. Prometemos que daí para a frente tudo será melhor, juramos mudar de vida, acreditamos em novas decisões. Esta nunca mais esqueces?! A resposta é óbvia: como é que se apaga da memória o dia do nosso renascimento?
Setembro de 2018. Assim começa a história de um internamento com olhar privilegiado para o SNS. Chamem-lhe uma epifania. E juntem-lhe um profundo obrigado.
É hora de mais um antibiótico. Faço três diferentes, várias vezes ao dia. O gota a gota que corre para as minhas veias é corrosivo: um “mata-tudo”. Não houve alternativa ao tratamento de largo espectro porque o “bicho” que me apanhou conseguiu fugir sem ser rotulado. É um oportunista sem nome, informaram-me os médicos. É eleitoralista, acusava a oposição, que a essa hora no Parlamento debatia com o Governo mais um Orçamento do Estado, o último desta geringonça e quase sempre com a Saúde na berlinda. Pudera!
Sigo sem grande interesse o debate na televisão do Parlamento – no hospital só há os quatro canais generalistas e a ARTV. Estou sobretudo concentrado no corrupio dos enfermeiros e no pinga-pinga do remédio. Cada gota é menos uma gota. Quando passamos muitos dias num hospital controlamos tudo ao detalhe. Ficamos obsessivos. Com a doença e com a cura. Mário Centeno é acusado de sofrer do mesmo mal, mas, no seu caso, a obsessão é pelo défice. Ou, se preferirem, pela saúde das contas públicas. A dívida do país assim o impõe. E para um Governo que tantos medos e fantasmas levantou, ter essa frente controlada é uma cartada de peso em ano eleitoral: chegou aonde a direita não conseguiu. A que custo? É lícito que nos inquietemos com o impacto do garrote das finanças em vários sectores. Na Saúde, por exemplo, a míngua fez crescer a infeção. O caso da pediatria do São João é chocante mas não é único. No mundo dos hospitais há culpas de vários governos e vergonhas para todos os gostos.
Estive 39 dias internado. Conheci vários serviços do São José e do Curry Cabral, conversei com médicos, enfermeiros, auxiliares. Gente fora de série e a quem muito agradeço pela forma como me trataram, mas sobretudo porque ainda se dedicam à nossa Saúde. Durante o internamento houve pelo menos três períodos de greve de enfermeiros e uma paralisação de técnicos de diagnóstico. Perguntava-lhes muitas vezes porque insistiam em manter uma luta quando já sabiam que nada ia mudar, a resposta chegava com um encolher de ombros mas com a razão do seu lado. São vítimas de um Governo que quis agradar a muitos e que foi criando expectativas que não está a cumprir. No SNS, além da falta de profissionais, também por causa das 35 horas, continua a não existir uma política clara que valorize as carreiras e o mérito e que impeça que tantos e tantos profissionais do público sejam seduzidos pelo privado. Os hospitais são cada vez mais uma manta de retalhos unida pela mesma lógica: hoje é assim, amanhã logo se vê.
Não defendo que a solução seja privatizar a Saúde, longe disso. Basta olhar para o que se passa noutros países para percebermos como o sistema público e tendencialmente gratuito é essencial. Mas o SNS não pode continuar a ser tratado como se fosse uma doença sem cura, sobretudo quando este Governo e os partidos que o suportam tantas juras de amor fizeram ao Estado Social e à sua defesa. Pelo volume de doentes que recebe e pela capacidade clínica e científica, o SNS ainda é um lugar seguro e de excelência. É lá que se faz escola e é também lá que encontramos resposta para os casos mais graves que muitos privados não saberiam cuidar ou simplesmente recusariam tocar.
Na fase final do meu internamento tiveram de parar um dos antibióticos porque já estava a causar sérios estragos no meu organismo. Com o Serviço Nacional de Saúde parece passar-se o mesmo, a cura das contas nacionais está a matar aos poucos os serviços. Sei bem que o caminho trilhado por Mário Centeno tem sido essencial para a credibilização do país no exterior e junto das agências de rating e recuso-me a entrar na utopia das esquerdas, que acham que há dinheiro para tudo e todos sem explicarem como se paga, ou na prosápia da direita que agora não hesita em exigir aumentos de despesa sem cuidar de os explicar. O que defendo é que se encare esta chaga nacional de forma séria e integrada. Já não basta prometer (para o dia de São Nunca) um hospital de Todos os Santos ou mais um reforço orçamental, falta um plano estratégico e de longo prazo. O SNS custa-nos muito dinheiro e a forma como está a ser gerido tem de mudar. A falta de autonomia dos hospitais, os desperdícios e os cortes continuados estão a minar um pilar essencial do Estado e a fomentar uma séria divisão entre ricos e pobres.
António Costa é responsável pelo assinalável feito político da geringonça à esquerda. Mas se quer deixar história e um verdadeiro legado, tem na Saúde a oportunidade de ouro. Foi aliás o próprio que disse à Lusa que este é um dos sectores que permite nova convergência com as esquerdas “porque há muito trabalho a continuar”. Nunca fala em urgência mas deixa claro que não pode ficar tudo na mesma: o SNS “precisa de muitas melhorias”. De facto, é preciso reinventá-lo com uma nova lógica e viabilidade. O desafio é complexo mas não pode ser encarado como utopia. Se eleger a Saúde como prioridade da próxima legislatura, Costa não só reforça o seu futuro político como nos deixa a todos um valioso Euromilhões.