Caça

A baleia tornou-se um animal mítico e está em vias de avolumar problemas diplomáticos

Para o biólogo, a decisão japonesa levanta vários problemas”: “Em primeiro lugar, que espécies vão de facto ser capturadas? E em que número?” <span class="creditofoto">Foto EPA</span>

Para o biólogo, a decisão japonesa levanta vários problemas”: “Em primeiro lugar, que espécies vão de facto ser capturadas? E em que número?” Foto EPA

Depois de ter visto rejeitada pela Comissão Baleeira Internacional a criação de uma quota para a captura comercial de baleias, o Japão concretizou a ameaça e abandonou este órgão, anunciando que vai retomar a atividade em 2019. “No Japão vão ser mortas baleias que outros países estão a tentar proteger”, explica ao Expresso o biólogo Rui Prieto, que alerta para as suscetibilidades diplomáticas da decisão agora tomada

Texto Mafalda Ganhão

A coberto de uma exceção criada pela Comissão Baleeira Internacional (CBI) para fins científicos, o Japão vem contornando uma proibição com três décadas e captura entre 200 e 1.200 baleias todos os anos, defendendo que investiga os níveis de stocks para ver se as espécies estão ameaçadas. Desde há algum tempo argumentava que algumas já não estão em perigo e pretendia voltar à caça comercial, tendo proposto uma quota para o efeito. Ao falhar esse objetivo, o país ameaçou bater com a porta e fechou-a agora de vez para voltar a caçar baleias em julho de 2019.

Rui Prieto, biólogo da Universidade dos Açores, explica ao Expresso por que motivo esta é uma decisão que pode facilmente reverter o equilíbrio até de espécies atualmente em melhores condições. Além do risco de o país abrir um precedente, “levantam-se vários problemas”.

Depois de ameaçar, o Japão concretizou a sua intenção e anunciou esta quarta-feira que vai sair da CBI e retomar a caça comercial de baleias em 2019. É uma má notícia recebida sem surpresa?

Não é de facto uma surpresa. Nos últimos anos tem havido uma grande discussão sobre o futuro da CBI, composta por países com posições muito distintas, e chegou-se a um impasse que parecia ser insolúvel. O Japão desde há muito que tentava obter uma quota que lhe permitisse a caça à baleia e já ameaçava sair. Não sei exatamente o que levou a que decisão fosse tomada agora, mas algo terá acontecido internamente para levar o país a passar à ação. Em questões como esta, há a mensagem direta, mas como bem sabemos esta também serve o objetivo de demonstrar autonomia e independência. É uma posição de força: ‘Quem manda nas nossas águas somos nós’.

O Japão fala em razões culturais e argumenta que há certas espécies de baleias cuja população é saudável o suficiente para ser colhida de forma sustentável, posição (e proposta) que não foi aceite. A pergunta é: é possível antecipar o impacto desta decisão?

A baleia tornou-se um animal mítico e este é um conceito que tem sido usado por ambos os lados como forma de argumentação. Na verdade, existem várias espécies, algumas das quais são ainda caçadas. No caso do Japão está particularmente em causa a baleia anã ou baleia anã da Antártida - populações aparentemente em boas condições - mas tudo depende da quantidade que venha a ser retirada. Estamos a falar de espécies muito sensíveis, cujo equilíbrio atual é de alguma forma precário, no sentido em que pode ser facilmente revertido. Depois há mesmo os casos de outras espécies, em que não se conseguiu ainda retornar aos níveis originais, como a baleia azul. Levantam-se vários problemas. Em primeiro lugar, que espécies vão de facto ser capturadas? E mesmo considerando que serão só as baleias anãs, em que número?

Foto Getty

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Pessoalmente, qual é a sua convicção?

Julgo que o Japão se prepara para fazer uma caça incluindo múltiplas espécies. Não será como a Noruega - onde só é capturada a baleia anã e respeitando uma quota anual; nem como a Islândia, onde também existe uma quota autoimposta, que mesmo assim, em muitos anos, não é sequer atingida. E vão avolumar-se problemas diplomáticos, como já acontece com a Austrália, porque se considerarmos as espécies migradoras, no Japão vão ser mortas baleias que outros países estão a tentar proteger e preservar.

Estão envolvidos outros riscos?

Do ponto de vista animal, estamos a falar de espécies sujeitas a outras pressões. A caça implica a morte, a mais extrema, mas podemos falar também do agravamento da poluição acústica, consequência da navegação; dos problemas da sobrepesca e de como estes entram em concorrência direta ou indireta com os cetáceos, afetando a manutenção das cadeia trófica; da poluição química; dos plásticos e microplásticos... e do aumento do tráfego marinho, com o número de mortes por abalroamento a registar uma subida para números não exatamente conhecidos. Um navio de grande porte nem se apercebe que embateu numa baleia, mas esta pode morrer em consequência disso ou ficar seriamente fragilizada.

E o risco de a decisão japonesa abrir um precedente que possa ser seguido por outros países?

Há outros países descontentes com a Comissão Baleeira. Originalmente, em 1946, foi criada como uma associação de países baleeiros como forma de autocontrolo, porque a baleação estava já em declínio e estes países estavam a perder os seus lucros. Não inclui todos onde se faz a caça à baleia - muitos deles na Ásia - e como acordo de parceiros que é, qualquer um é livre de o denunciar, abandonando a Comissão a qualquer momento, como está a fazer o Japão. A partir desse momento, ficam livres para tomar as suas próprias decisões, mesmo que absolutamente contrárias ao que estavam antes obrigados a respeitar.

Na verdade, e apesar de a caça comercial ter sido proibida pela CBI em 1986 depois de algumas espécies terem sido levadas quase à extinção, o próprio Japão continuou a fazer capturas, a coberto da utilização científica...

É um facto. Com as espécies capturadas a chegarem ao mercado.

Foto EPA

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Há forma de se conseguir uma marcha-atrás?

Se for para consumo interno, o país é livre de o fazer. A situação é diferente se o Japão quiser exportar e estiver ligado a outras acordos que exijam licenças para o fazer. São geralmente licenças quase impossíveis de obter para fins comerciais. Noutro plano, sei que há no país um movimento antibaleação que já foi mais residual. A população ativa japonesa é relativamente jovem e um bocado ocidentalizada, pelo que, perante esta viragem, pode estar mais sensível e disposta a fazer barulho. Por outro lado, a procura tem vindo a diminuir. Como proteína, o valor da espécie é escasso e a própria gordura da baleia era consumida mas o hábito tem-se vindo a perder. O que não significa, claro, que não possam vir a ser desenvolvidas campanhas para fazer renascer esta cultura gastronómica. Já aconteceu no passado e em vários sítios no mundo, nomeadamente no pós-Guerra.