O Natal é uma seca
Foi mais um (ou menos um, como sabiamente diz minha mãe, que aos 91 anos faz contagens regressivas e não progressivas). Passou-se, como sempre, no meio de uma necessidade de artificialmente mostrarmos grande amabilidade enquanto se engole o travo amargo da chatice. Num texto impressivo no último Expresso semanal, Clara Ferreira Alves fala-nos desta época em que toda a gente emula o porquinho-da-índia na sua rodinha, correndo para lado nenhum.
Os jornais enchem-se de boas intenções. Querem saber do Jesus Histórico, da data exata do seu nascimento, do que pode ter sido a estrela dos Reis Magos, da possibilidade de Maria ser Virgem, enfim, da autenticidade de alguns Evangelhos e de dogmas assegurados em Concílios, mostrando-se por, numa época em que tudo é tão literal, poder existir algo de simbólico, de hiperbólico na história que nos é contada. O próprio Papa indigna-se contra a voracidade consumista da época.
E, não obstante, todos os anos é pior.
Ninguém, salvo algumas organizações piedosas, dá o que Aquele que se celebra, Jesus, pediu. Ele apenas pediu mais um mandamento, que era o do amor. O amor verdadeiro, fraterno, desinteressado, sem cuidar de quem é o nosso próximo e o nosso distante, sem ligar se é judeu escrupuloso ou impuro Samaritano. Pelo contrário, queremos fazer felizes os que nos fazem felizes – e esses são sobretudo as crianças, as mais pequenas, que ainda não tiveram tempo de nos desiludirem; ou os adultos que não nos podem desiludir sem desestruturar as nossas vidas, porque são filhos, cônjuges, pais ou, seja como for, demasiado chegados. Mesmo assim, gasta-se o que se tem e o que não se tem, come-se como Gargântuas e a poupança das famílias está em mínimos históricos.
A parábola do Bom Samaritano teria hoje como personagem principal um Assistente Social da Segurança Social que, por ter 35 horas de trabalho, entregaria o homem ferido ao colega que entra no turno seguinte
A caridade ficou a cargo do Estado, que nos desobriga a cuidar do próximo. A parábola do Bom Samaritano teria hoje como personagem principal um Assistente Social da Segurança Social que, por ter 35 horas de trabalho, entregaria o homem ferido ao colega que entra no turno seguinte. E, depois, há o problema das famílias. São cada vez maiores (há, em muitos casos, quatro gerações que coexistem – a minha mãe diz que não se importa de ser bisavó, mas ainda lhe faz confusão ser mãe de um avô e de uma avó). As crianças têm, em muitos casos, um pai que vive com uma madrasta (em todo o caso diferente daquela dos contos tradicionais como a Cinderella) e uma mãe que vive com um padrasto (isto ainda na versão mais tradicional). E todos estes têm, por sua vez, pais e mães que também atrapalham o Natal para quem não tenha uma casa com capacidade para receber 500 pessoas das quais mais de metade nem são de família nem se conhecem.
Os filhos são casados e têm os sogros que também celebram o Natal com famílias mais ou menos confusas. Com a globalização, a prima A é casada com um holandês, a B com um checo e o C com uma polaca. Viajam! Sentimos que devíamos ter arranjado alguém especialista em logística ou organização de eventos para, no fim, sermos uma meia-dúzia de gatos pingados porque entre os que viajaram para a família dos namoridos ou namulheres, enfim, os que com eles vivem sem ainda (ou nunca) terem formalizado a relação e os que têm de ir ter com a mulher do pai que foi uma querida para eles. Tinha um sobrinho que dizia ter três pais da primeira mãe e três mães do primeiro pai.
E o Natal que era simples como uma linha reta – consoada com uns avós, almoço de Natal com os outros, vivendo todos a menos de cinco quilómetros – espalhou-se com o fim das famílias estruturadas e com as distâncias que os Erasmus, mestrados, doutoramentos e procuras de melhores vidas impuseram aos mais jovens.
No fim, talvez sem um pensamento sobre o significado do nascimento e do renascimento, que vem do fim dos tempos nestes dias que voltam a crescer até quase derrotarem a Noite, o Natal passa-se. Até ao fim do Ano, que com características diferentes nos obriga a estar contentes por estarmos vivos, temos uns dias de descanso e com pouco trânsito.
Talvez seja o melhor de tudo isto…