Rui Cardoso

Sete escolhos na rota de Bolsonaro

Ao tomar posse nesta terça-feira, 1 de janeiro, o novo Presidente do Brasil proclamou repetidamente o quanto acreditava em Deus. Resta saber se a inversa é verdadeira, pois os obstáculos no seu caminho são de monta, alguns na sua própria base de apoio.

1. MILITARES

Embora tenha passado à reserva com a patente de capitão, o que é curto para alguém vindo da Academia Militar, Bolsonaro recheou o seu governo de altas patentes. Nada menos de sete, mais do que no primeiro governo da ditadura militar (1964, general Castelo Branco). Esta componente fardada é justificada com a invocação de duas ameaças: a criminalidade e o risco de infiltrações hostis oriundas de países mais ou menos vizinhos (leia-se Venezuela e Cuba), visando, designadamente, a Amazónia, cuja integridade perante a cobiça do “gringo” e da ONU é um velho fetiche da doutrina militar brasileira. Contudo, se as coisas começarem a correr mal a instituição castrense não hesitará em marcar distâncias relativamente ao antigo capitão.

2. COESÃO GOVERNAMENTAL

Com 22 membros, o novo Executivo assemelha-se a um coro barroco a várias vozes, não necessariamente no mesmo tom. Do elenco faz, por exemplo, parte, com a pasta dos Direitos Humanos, Família e Mulher, uma pastora evangélica, Damares Alves, famosa por contar que Jesus lhe apareceu ao pé de uma goiabeira - o que, convenhamos, é um raio de um sítio para uma aparição divina. Ao aceitar a pasta da Justiça, o juiz Sérgio Moro sujeitou-se a passar a ser visto como tendo uma agenda política por trás das suas investidas contra Lula da Silva. Nos Negócios Estrangeiros Ernesto Araújo é um discípulo do iluminado Olavo de Carvalho e pretende recentrar a política externa brasileira “num eixo judaico-cristão” que inclui Israel, os Estados Unidos e… a Rússia de Putin. Ao contrário dos supremacistas brancos e de outros extremistas de direita dos EUA, carregados de referências nazis, esta ultradireita tropical não só não é antissemita como se revela pró-Netanyahu.

Só não se percebe como é que a tradição de excelência da diplomacia brasileira, traduzida na ocupação de destacados cargos internacionais (recorde-se, por exemplo, Sérgio Vieira de Melo na ONU), se coaduna com isto, a menos que se desenhe um saneamento geral no Itamaraty em nome do combate às “infiltrações marxistas”. Acresce que a colagem excessiva a Trump pode revelar-se contraproducente se este vier a sair-se mal nas eleições de 2020.

Mas ainda maior calcanhar de Aquiles é a Economia. Confessando-se pouco versado em tais matérias, Bolsonaro delega integralmente esta área em Paulo Guedes, um economista ultraliberal da Escola de Chicago, encarregando-o da Economia, Finanças, Planeamento e Comércio Externo. Ou seja gera-se um “presidente bis” com poderes reforçados e a perspetiva de um choque de líderes.

3. POLÍTICA EXTERNA

Com esta estrutura governamental há o risco de se gerarem duas políticas externas contraditórias. Uma, protagonizada pelo MNE Ernesto Araújo, é puramente ideológica e implica a colagem total a Trump e a Israel em assuntos como Jerusalém ou a atitude relativamente a Pequim. Acresce a elevação a inimigos principais de dois vizinhos: Cuba e Venezuela, apesar de nenhum destes atravessar propriamente o seu melhor momento. E de, em abono da verdade, ser conveniente lembrar que Lula ou Dilma se demarcaram em diversas ocasiões das violações de direitos humanos na Venezuela e de, no plano externo, terem estado sempre mais próximos da Argentina de Kirchner que de Chavez ou de Maduro.

A outra política externa que se desenha em paralelo com a primeira é pragmática e economicamente orientada, inspirada pelo superministro Paulo Guedes e visando garantir os pilares das exportações brasileiras, designadamente no agroalimentar. O problema é que as duas políticas são mutuamente exclusivas: a colagem a Israel corre o risco de irritar países árabes como o Egito, grandes consumidores do frango e da vaca brasileiros, enquanto a agora criticada China é o grande comprador de soja…

4. AMBIENTE E AMAZONAS

Também aqui a coerência governamental pode fraquejar. Bolsonaro, agora à cabeça do país que acolheu a ECO 92, no Rio de Janeiro, e a COP 21, em Brasília, assume-se como climatocético e esboça querer seguir Trump na saída do Acordo de Paris. Já o seu ministro do Ambiente, Ricardo Sales, sendo próximo do lóbi agroalimentar, não é climatocético e defende a fidelidade ao acordo de Paris. Entretanto, os sinais dados relativamente ao Amazonas e às terras dos índios já foram suficientes para encorajar os jagunços dos grandes fazendeiros e/ou os garimpeiros ilegais a atacarem uma delegação do Ibama (instituto do Ambiente) e outra do Instituto Xico Neves para a Biodiversidade (em memória do militante ecologista assassinado).

5. MITOS DA GUERRA FRIA

Para dar substrato ideológico às medidas que se pretendem aplicar foram repescados fantasmas da Guerra Fria. No plano externo brande-se a ameaça “das ditaduras marxistas” latinoamericanas. No que respeita a Cuba é uma evidência que a perspetiva de exportação da revolução castrista terminou com a liquidação de Che Guevara pela CIA e pelas tropas bolivianas, em 1967. Quanto à Venezuela, afunda-se numa espiral de caos para mal de quem lá tem de viver. Insinua-se ainda a possibilidade de infiltração de grupos extremistas estrangeiros através da extensa fronteira brasileira, ressuscitando, por exemplo, o grupo maoísta Sendero Luninoso, desmantelado pelas autoridades peruanas e com atividade residual desde 2003.

A contrapartida destas ameaças externas é uma ameaça interna não menos fantasmática: a existência de um “marxismo cultural” que, tendo sobrevivido à queda do Muro de Berlim, se implantou nas universidades, nas artes e espetáculos e na cultura. Vista da extrema-direita ou através dos óculos evangélicos, a luta pelos direitos das mulheres ou contra a discriminação de género é “marxismo”, como provavelmente qualquer forma de expressão da diferença de pensamento ou da dissidência. Nada mau para quem critica tão acerbamente a ditadura de um Nicolás Maduro.

6. DERIVA AUTORITÁRIA

Ao contrário de Portugal ou da África do Sul, o Brasil nunca fez o luto da sua ditadura (1964/85). Em nome da reconciliação nacional, os promotores de torturas e execuções sumárias nunca foram investigados e muito menos levados perante a Justiça, ao contrário do que sucedeu e continua a suceder na vizinha Argentina. O período da ditadura militar foi varrido para baixo do tapete, nunca houve debate nacional sobre o assunto e só a esta luz se compreende o saudosismo de Bolsonaro e seus apoiantes relativamente a um período mitificado como uma época de prosperidade e segurança nas ruas. A presença de um dispositivo militar ostensivo na posse de Bolsonaro, que incluía armamento antiaéreo pesado, é um sinal dado não tanto aos narcotraficantes mas aos movimentos sociais como os de camponeses, de agora em diante criminalizados.

Num país que precisa desesperadamente de uma polícia profissional e capaz de se relacionar com a população, em especial nas favelas, as proclamações de restauração da segurança fazem recear o tempo dos esquadrões da morte, que em bom rigor nunca acabaram, transformando-se em milícias locais de diversos tipos com as quais, a médio prazo, os militares dificilmente conviverão.

7. PARLAMENTO

Por muito que o novo executivo se queira voluntarista, há medidas já anunciadas que não podem deixar de ir ao Parlamento, desde a alteração do estatuto das terras dos índios, à mudança do regime de reformas e aposentações. Só que o Parlamento, com mais de meio milhar de deputados, continua a apresentar-se atomizado e disperso, com um sem número de formações sem ideologia nem programa político que vivem da venda circunstancial do voto da bancada em troca de favores políticos ou outros.

Bolsonaro só tem garantido o apoio das três bancadas do B: da Bala (saudosistas da ditadura e defensores do porte de arma à americana), do Boi (o lóbi dos fazendeiros e da indústria agroalimentar) e da Bíblia (evangelistas). Estes últimos sonham com um negócio político em que, como prémio do seu apoio ao Governo, lhes seja permitido evangelizar à força os índios do Amazonas, à século XVII. Com a diferença que desta vez não se vislumbra um Padre António Vieira que tenha a coragem e a eloquência capazes de defenderem o índio.