A greve é como a guerra, deve ter custos para todos quererem a paz
Como jornalista tive poucas oportunidades para fazer greve e, desde que trabalho fora das redações, passaram a ser nenhumas. As poucas que pude fazer, não as furei. Sou filho de uma sindicalista e ser fura-greves é falha grave. A greve errada critica-se e combate-se no sindicato, não se fura. Porque isso fragiliza quem fica sozinho na luta e, em última análise, todos os trabalhadores. Foi o que aprendi quando a solidariedade de classe (não confundir com corporativismo) tinha alguma coisa a ver com sindicalismo. Sempre contestei o discurso dos que se dizem defensores da greve mas a querem sem custos para economia, para os clientes e utentes, para as empresas e até para os patrões. A greve é a arma dos trabalhadores que equilibra a sua relação com o empregador. É por isso mesmo que ela é legal e o lockout não. Se não prejudicar ninguém é inútil.
No caso das greves de trabalhadores do Estado, a coisa funciona de uma forma um pouco diferente: o alvo é o poder político democrático, os prejudicados são os cidadãos. Espera-se que o prejuízo dos cidadãos (e os custos financeiros associados, quando existem) funcione como pressão junto do poder político e o obrigue a ceder. Mas não há um confronto entre o trabalho e o capital. Enquanto o trabalhador do privado luta com o patrão para a divisão da riqueza, o trabalhador do Estado luta, em última análise, com os contribuintes, grupo em que ele próprio se inclui. Há quem tente substituir, no seu discurso, o lucro dos privados pelo dinheiro que é dado aos bancos ou coisas semelhantes. É um mero exercício retórico. Isto não diminui o direito à greve dos funcionários públicos, apenas os confronta com outro tipo de dilemas éticos que o sindicalismo consciente não costuma ignorar.
O facto de eu não furar greves e de defender este direito (não apenas formal) como condição da democracia, não implica que apoie todas as greves. Até posso defender as reivindicações de uma greve e opor-me a essa greve, se considero que os seus métodos são pouco éticos ou se os efeitos são desproporcionados para o bem que pretendem alcançar. É seguramente o que acontece com a greve dos enfermeiros, à qual nem sequer estou seguro que se possa realmente chamar de greve.
Como já escrevi, considero a generalidade das reivindicações dos enfermeiros justas. Tão justas como as dos professores que, não sei porquê, não merecem a mesma simpatia dos sectores que mais têm apoiado os enfermeiros. A minha crítica é à forma encontrada para tornar esta greve mais eficaz e os precedentes perversos que estão a ser abertos. Dois pequenos sindicatos, capitaneados pela bastonária e representados por um movimento inorgânico sem uma liderança responsável, encontraram o que julgam ser o ovo de Colombo: uma greve que, não tendo qualquer custo relevante para quem a faz, pode prolongar-se durante anos. Através de uma recolha de fundos informal, sem os requisitos mínimos de transparência (o que permitirá, a ser replicada, aproveitamentos perigosos), financiam-se uns poucos enfermeiros para não trabalharem.
As greves cirúrgicas não costumam ter fundo de greve, os fundos de greve só costumam ser usados para pagar a greve de todos os que para ele contribuíram. Os enfermeiros estão a fazer uma greve por procuração, sem custos para os grevistas e baratíssima para quem, beneficiando dos efeitos da greve, não a tem de fazer. Se a isto juntarmos o facto de o fundo de greve não o ser realmente e a greve cirúrgica ser numa área que pode custar vidas, temos um bingo. Perante a grosseira perversão do instituto da greve e a ausência de razoabilidade, de ética sindical e de sensibilidade social, defendo, dentro dos limites da lei, a requisição civil
É importante juntar os vários elementos desta greve. Apesar de não ser tradicional em Portugal, muitos sindicatos por essa Europa fora têm fundos de greve. Eles permitem greves mais longas. Muitos sindicatos recorrem a greves cirúrgicas, focadas num sector com maior impacto. Isso deve ser cauteloso e excecional. Usar um fundo de greve para parar um sector específico tem o problema de poder tornar a greve eterna, porque o efeito é brutal para um custo mínimo. As greves cirúrgicas não costumam ter fundo de greve, os fundos de greve só costumam ser usados para pagar a greve de todos os que para ele contribuíram. Aquilo a que estamos a assistir é a uma greve por procuração, sem custos para os grevistas e baratíssima para quem, beneficiando dos efeitos da greve, não a tem de fazer. Se a isto juntarmos o facto de o fundo de greve não o ser realmente e estar aberto a contribuições externas e até anónimas, e a greve cirúrgica ser numa área que pode custar vidas, temos um bingo. Cada coisa isolada, sendo excecional, pode ser aceitável. Todas juntas são inaceitáveis.
O sindicalismo tem uma ética associada. Só assim ele pode ter a proteção constitucional que lhe é dada. Não é por nunca lhes ter ocorrido que os sindicatos tradicionais não associaram um crowdfunding a uma greve cirúrgica. Nem sequer é pelas novas tecnologias. Se os contribuintes são mesmo enfermeiros isto já era fácil de fazer. É porque, ao contrário destes movimentos e da bastonária, eles estão familiarizados com essa ética, com que lidaram e que ajudaram a construir em décadas de luta. Ao contrário de quem lidera esta greve, têm passado, uma tradição ligada à valores e um futuro a preservar. O mal que esta greve está a fazer ao sindicalismo só pode ser indiferente a quem se está nas tintas para o sindicalismo.
Há um debate ético sobre a utilização de drones nas guerras que se aplica às greves. A utilização de drones protege um dos lados de qualquer baixa ou até mazela física ou psicológica. Esta excessiva proteção pode levar a uma insensatez patológica. Não há urgência para o fim da guerra, não há limites para o que se quer conquistar e não há qualquer sensibilidade para os efeitos do que se está a fazer. Não há ética associada ao combate. Sem risco na guerra não há motivação para a paz. É o que acontece com esta greve. Só uma guerra de que dependa a sobrevivência de um dos lados pode ser levada até à morte do lado oposto e eternizar-se até que algum deles sucumba. O mesmo acontece com as greves. E é isso que explica que os mineiros ingleses tenham, em 1984, feito uma greve de um ano. Ou venciam ou acabam enquanto mineiros e trabalhadores. Alguém que diga que é o caso dos enfermeiros insulta décadas de luta dos trabalhadores.
A greve dos enfermeiros é legítima. As requisições civis, determinadas pela lei e pela justiça, também o são. Talvez só o uso das duas possa garantir que as partes se sentem à mesa. Perante uma grosseira perversão do instituto da greve e a ausência de razoabilidade, de ética sindical e de sensibilidade social, defendo, contra tudo o que é a minha cultura política mas dentro dos limites da lei, a requisição civil. Esta greve, feita por poucos por procuração remunerada de outros, perverte o direito à greve e fragiliza o sindicalismo. Não é por acaso que os que sempre combateram este direito a aplaudem com tanto afinco.