O POEMA ENSINA A CAIR

“A VIDA SERVE PARA QUÊ?”

Vasco Gato publicou o primeiro livro de poesia na Assírio e Alvim aos 22 anos. Lê poesia desde a adolescência, muito por culpa da mãe, "grande apreciadora de Álvaro de Campos", e do avô paterno que brincava com Vasco e o irmão a fazer jogos de conhecimento para decorarem nomes de reis, conjugações de verbos, e também Camões. Chegou a frequentar o curso de economia durante um ano mas "ia morrendo". Aos dez títulos já publicados, há de juntar-se em breve o livro Fera Oculta. Escreveu-o durante a gravidez do filho de um mês chamado Rodrigo

TEXTO RAQUEL MARINHO VÍDEO JOANA BELEZA GRAFISMO VÍDEO JOÃO ROBERTO

As minhas pestanas, cargueiros deixados sem âncora a transportar a noite.

Vasco Gato (1978) publicou o primeiro livro de poesia na Assírio e Alvim aos 22 anos. Disse aos amigos que ia entregar um original na editora e responderam-lhe "mas porquê a Assírio? Isso é impossível!". O livro, que não gosta de reler e no qual já não se revê, chama-se Um Mover de Mão: "era um livro muito exposto nas minhas ambições sentimentais. O primeiro é sempre muito à flor da pele e a mim ficou-me um bocado essa ferida de não ter tido essa noção".

Lembra Vergílio Ferreira, "Não te vou falar de mim - um <eu> é tão lastimável", para explicar que o seu processo de escrita "nunca foi íntimo e confessional", nem mesmo quando começou a escrever poemas na adolescência onde "nunca dizia <fiz isto> ou <estive aqui>". A motivação de Vasco Gato foi sempre "encriptar as coisas" e acabou por escrever, ou tentar escrever, sobre temas mais "filosóficos". "Se é que há um lado poético fundamental na minha existência tem a ver com a prática do que é viver. Viver serve para quê?" A pergunta para a qual ainda não encontrou resposta mas que considera a questão fundamental: "o que me motiva é manter a interrogação a debitar energia".

Lê poesia desde a adolescência, muito por culpa da mãe, "grande apreciadora de Álvaro de Campos", e do avô paterno que brincava com Vasco Gato e o irmão a fazer jogos de conhecimento para decorarem nomes de reis, conjugações de verbos, e também Camões: "punha-nos a decorar versos para depois dizermos. E às tantas, dizíamos tantas vezes, que tínhamos que lidar com aquelas palavras". Lidou, portanto, bem, com Luís de Camões e Fernando Pessoa quando os encontrou no curriculum escolar, mas aos quinze anos já lia também Herberto Helder, Eugénio de Andrade ou Al Berto, ao mesmo tempo que estudava para ser, talvez, economista. Bom aluno, "atento às aulas por ser introvertido", não precisava de estudar para ter boas notas, e acabou o secundário com média de 18 valores. Chegou a frequentar o curso de economia durante um ano mas "ia morrendo". Ri quando diz isto e explica que o curso "não tinha nada de expressivo ou pessoal", e que, por isso, o abandonou para estudar filosofia. Uma vez mais, interessavam-lhe as mesmas interrogações que o alimentam hoje.

Foi durante o curso de filosofia que começou a publicar poesia, antes de fazer erasmus em Itália, país onde aprendeu "a língua, a comida e as canções", e antes de desistir do curso porque "estava orientado para formar professores". Vasco Gato não queria ensinar filosofia, aliás, nunca quis concretamente uma profissão a não ser, quando era criança, "ser jogador de futebol".

Depois de chegar de Itália teve um "percurso saltitante": trabalhou num bar da zona da Bica, em Lisboa, onde "fazia tudo, desde lavar pratos a limpar as casas de banho", num outro bar do teatro A Barraca onde participava na organização de um recital de poesia quinzenal, ou ainda nos aviões da Air Luxor como comissário de bordo: "metade da experiência foi do outro lado do mundo, estive para aí seis meses entre a Austrália e o Koweit".

A tradução, principal atividade do presente, começou nessa altura pela mão de Jorge Reis Sá, um dos responsáveis da extinta editora Quasi. Desafiaram-no para traduzir O Último Rei da Escócia, e, apesar de considerar que a experiência não correu pelo melhor, "deve ter sido uma tradução péssima", os convites continuaram. Quando as Quasi fecharam e ficou sem trabalho, decidiu mudar outra vez: "peguei no mapa e vi sítios a 100 quilómetros de Lisboa. Em Montemor-O-Novo havia uma livraria boa, e eu liguei para lá a perguntar se sabiam de casas para alugar". Ficou um ano, "de alguma infelicidade", sobretudo porque quase não conhecia outras pessoas além dos donos da livraria: "sempre tinha tido aquela ideia de ir para um cantinho e ainda tenho, mas com companhia. A solidão deu cabo de mim."

Traduz romance mas prefere ler poesia e ensaio. Destaca Paul Clean, "todo", Luiz Pacheco e o livro "Comunidade" que "toda a gente devia ler", "Os Passos em Volta" de Herberto Helder, ou os livros de Raul Brandão, "um escritor um bocado maltratado no país, que pode entrar na ficção e no romance mas é intensíssimo e fortíssimo, a experiência da linguagem feita a sério". Usa de uma expressão mais séria para falar de Blaise Cendrars e do poema "Prosa do Transiberiano e da Joaninha de França", "uma coisa arrasadora".

Aos dez títulos publicados, há de juntar-se em breve o livro Fera Oculta. Escreveu-o durante a gravidez do filho de um mês chamado Rodrigo: "é um bocado essa meditação do que é ser pai neste momento. O que é esperar alguém, e que mundo apresentar a essa pessoa".

Explica que antes de o filho nascer "andava bastante pessimista em relação ao mundo" mas que isso se perdeu:"neste momento, basta-me vê-lo a espreguiçar-se".

A poesia serve para quê?

A vida serve para quê?

Deve saber vários versos de cor. Qual o primeiro que lhe vem à cabeça?

«O grito de uma flor anseia por uma existência», de Paul Celan, na versão publicada de João Barrento.

Se não fosse poeta português (ou de outro país) seria de que nacionalidade?

Hesito entre a italiana, por todos os pretextos não-poéticos (sem descurar casos de escrita admiráveis), e a iraniana, pela expressão a um tempo meditativa e sensível que em geral consegue.

Um bom poema é?

Aquele que ainda não somos.

O que o comove?

“Expecting to Fly”, dos Buffalo Springfield, por exemplo.

Que poema enviaria ao primeiro-ministro português?

«enquanto uns exploram
a mão-de-obra barata
eu volto à região
para pagar
pequenas dívidas:
o preço de um quarto,
pão, uma sopa.
a rádio entrevista os políticos
para a próxima campanha.
mas quem anda a pé
é que transforma
o que ama em luz.
entrarei no céu de pés descalços»
de Carlos Saraiva Pinto.

Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?

Por minha vontade, apenas o que ficará inscrito naqueles que conheço e que permanecerão. E, sim, esta nossa efemeridade também me comove.

POESIA O poema lido por Vasco Gato e o que escolheu para ser lido por Raquel Marinho

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