Também nas cidades, “take back control”
O artigo de hoje, com que me despeço para ir de férias, é sobre gentrificação das cidades. E não é sobre o ex-vereador Ricardo Robles, sobre o qual escreverei na edição semanal do Expresso. Até lá, lamento se insisto em escrever sobre política e se não contribuo para uma das tarefas centrais da comunicação social de hoje: a de conseguir que, através de um tratamento sempre desproporcionado (seja qual for o alvo) do pequeno escândalo pessoal em relação aos grandes problemas políticos, vivamos todos alheados dos problemas políticos e continuemos a avaliar os eleitos por tudo menos pelo que fazem no cargo. E nisto sou absolutamente coerente com tudo o que tenho escrito sobre o miserável estado do debate público nas democracias de hoje. Do que quero falar é, pois, de políticas públicas. Pedindo desculpa pelo aborrecimento causado.
Na semana passada um conjunto de cidades assinou uma declaração pelo direito à habitação e à cidade, que pode ler AQUI. Subscrito pelos presidentes de câmara de Amesterdão, Barcelona, Berlim, Cidade do México, Durban, Lisboa, Londres, Montreal, Montevideo, Nova Iorque, Paris e Seul, é um documento totalmente político que ultrapassa o discurso redondo e burocrático que costumamos encontrar nestes documentos. É um grito de protesto e uma exigência de ação contra a transformação das cidades em meros ativos financeiros. É, acima de tudo, a afirmação de uma das maiores prioridades políticas da próxima década: o combate à gentrificação das cidades, que expulsa os cidadãos pobres e de classes médias. E tem dois alvos principais: a ausência de gestão das políticas de turismo e a entrada dos fundos financeiros no mercado imobiliário, transformando as cidades em meros investimentos especulativos.
Os autarcas exigem mais ferramentas fiscais e jurídicas para regular o mercado imobiliário, seja na venda e compra de casa, seja no arrendamento. Como noutros casos, a tese de menos Estado e mais liberdade para o mercado esbarra com a realidade: essa escolha levará, com a entrada dos fundos financeiros e do turismo em larga escala nos grandes centros urbanos, ao esvaziamento dos centros e à insustentabilidade da vida urbana. O mercado totalmente livre é, sempre foi, insustentável. É por isso que o capitalismo, sempre que conquistou demasiada liberdade, entrou em rutura e acabou por aceitar maior intervenção do Estado. E foi sempre salvo por essa intervenção.
Os cidadãos querem o controlo democrático perante o poder do “internacionalismo financeiro”. Isto vale para as cidades, ao recusarem que umas poucas plataformas digitais transnacionais passem a gerir uma parte razoável do arrendamento e que fundos de pensões tornem bairros inteiros em investimento especulativo. E vale para as nações. Sem complexos, temos de recuperar o controlo
As câmaras também exigem mais meios financeiros para criar um verdadeiro mercado público de habitação. Esse é o caminho: dar à habitação o estatuto que demos, nas sociedades onde há Estado Social, à saúde e à educação. O processo de globalização torna isto inevitável. E se durante décadas a habitação pública se concentrou apenas nas classes mais baixas, ela agora terá de se dirigir às classes médias. Porque sem isso elas serão expulsas e passaremos a ter cidades ainda mais irracionais, totalmente despovoadas nas suas zonas centrais e sobrepovoadas nas periferias; e porque a entrada de milhares de casas públicas no mercado é a única forma de moderar a pressão especulativa causada pelo turismo e pelo investimento financeiro que migrou dos bancos para o imobiliário. Esta política de habitação pública pode ser combinada com a cooperação do Estado com o sector privado e comunitário.
Os presidentes de câmara defendem o reforço do planeamento urbano, essa palavra maldita num tempo em que ideologias quase distópicas parecem acreditar que as cidades, os países e as economias podem navegar na corrente do mercado sem qualquer perspetiva de futuro que não seja o imprevisto. Isto quer dizer, é bom dizer a quem custa ouvir, Estado com mais poder sobre o território e o mercado.
Esta declaração, assinada por algumas das cidades mais importantes do mundo, é sobre política urbana mas podia ser sobre qualquer outro assunto que se relacione com a globalização económica. O facto de ser sobre políticas concretas e facilmente compreensíveis para o comum dos cidadãos tem a enorme vantagem de retirar o debate sobre a globalização e financeirização do capitalismo das frases feitas e piedosas. Ele mostra como este processo é insustentável e acabará por ter efeitos de tal forma destrutivos da vida em sociedade que só pode acabar em reações de revolta com discursos que nenhum democrata quer ver triunfar.
Estas cidades, conscientes de que com a perda de muitos dos poderes dos estados nacionais elas passaram a estar na linha da frente da regulação, exigem o que está expresso na frase que mais calafrios causa a quem confunde cosmopolitismo com o fim da soberania: “take back control”. A frase usada na campanha do Brexit não está errada. Ela é a base da democracia que permite a soberania de um povo sobre os seus destinos, do Estado sobre a finança, do poder político sobre o poder económico. Ela é a base de todo o pensamento da esquerda democrática. É ela que permite políticas públicas, recursos financeiros, planeamento que se impõe ao mercado, leis e capacidade coerciva que nos defendam do poder do mais forte. O que está errado é a esquerda ter deixado a direita xenófoba apropriar-se desta frase para atacar os imigrantes. O que está errado é não ter sido a primeira a usá-la.
Nós, cidadãos, queremos as nossas cidades de volta. E queremos que os que elegemos para dirigir os destinos das nossas nações e das nossas cidades nos representem. Sim, queremos o controlo democrático perante o poder do “internacionalismo financeiro”. Isto vale para as cidades, ao recusarem que umas poucas plataformas digitais transnacionais passem a gerir uma parte razoável do arrendamento e que fundos de pensões tornem bairros inteiros em investimento especulativo. E vale para as nações. Sem complexos, temos de recuperar o controlo.