Daniel Oliveira

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

Venezuela: revolução contra o povo é ditadura

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Nas sociedades europeias o Estado social, com vista à conquista de mínimos de justiça e igualdade, foi conquistado, em grande parte, depois de duas guerras de enormes dimensões e, na maioria dos casos, em sociedades com alguma tradição democrática. Não se fez sem luta feroz e até perdas de vidas. Mas fez-se em nome de um ideal democrático. No estado de desenvolvimento económico da América Latina, com gigantescas desigualdades sociais e uma intensa interferência externa de recorte colonial, este desiderato é muitíssimo mais complicado.

A chegada de Chavez ao poder, que acabaria por ajudar ao desenvolvimento de movimentos progressistas e anti-imperalistas no continente sul-americano (e o imperialismo, nesta parte do mundo, não é uma mera palavra), poderia ter sido uma oportunidade. Chavez chegou ao poder pelo voto contra quem lhe quis tirar o poder pelas armas. É bom recordar isto para que a história não se reescreva.

Não sei se Chavez teria conquistado o apoio do seu povo se não tivesse o perfil que tinha. Sei que se não fosse um caudilho o caminho da “revolução bolivariana” teria sido outro. O movimento que impulsionou teria ajudado a construir uma dinâmica democrática que não fizesse depender o futuro das conquistas sociais da eterna permanência no poder do mesmo partido e do mesmo homem. A liberdade de um povo não pode depender de um homem, porque isso é o oposto da liberdade. A sua revolução não seria sua e teria surgido à sua volta melhor do que a mediocridade tresloucada de Nicolás Maduro. E se assim tivesse acontecido os venezuelanos não estariam condenados a escolher entre uma revolução em decadência e desesperadamente agarrada ao poder e autoproclamados democratas que durante todo o período que a maioria dos venezuelanos apoiou Hugo Chavez sempre recusaram a legitimidade do seu governo, não hesitando mesmo em usar a força das armas contra a força do voto.

Sem dinheiro no bolso e com o caos na rua, a maioria dos venezuelanos que em tempos apoiou Chavez já não quer Maduro. O socialismo pode e deve lutar contra os seus inimigos. Não pode nem deve lutar contra o povo

Se Chavez, para além de ter distribuído melhor os proventos do petróleo (e nesta matéria a evolução do Índice de Desenvolvimento Humano não engana), tivesse usado os enormes recursos do seu país para mudar a economia venezuelana, transportando-a para outro patamar de desenvolvimento e criando condições para quebrar o círculo de pobreza, a revolução não teria soçobrado ao primeiro abalo no preço do petróleo. Mas para isso teria de se rodear de pessoas competentes que geralmente têm sentido crítico e não aceitam idolatrar líderes incontestáveis.

Infelizmente para um projeto socialista democrático para a América Latina, a “revolução bolivariana” dependeu de um militar de perfil autoritário que se rodeou de seguidores em vez de camaradas e que foi incapaz de mudar a economia venezuelana para que as conquistas sociais não dependessem da volatilidade do preço do petróleo. Sem dinheiro no bolso e com o caos na rua, a maioria dos venezuelanos que em tempos apoiou Chavez não quer Maduro. E se o socialismo pode e deve lutar contra os seus inimigos, não pode nem deve lutar contra o povo.

O projeto socialista venezuelano está a pagar pelos brutais erros de Chavez, que estão na origem da sua própria revolução carismática. Mas Chavez tinha a seu favor um facto que alguns falsos democratas sempre desprezaram: a legitimidade do voto. Ao desrespeitar a eleição da última Assembleia Nacional Maduro passou a linha que separava esta revolução de uma ditadura. Como se viu ontem, com a baixa adesão às eleição para a Assembleia Constituinte (segundo observadores independentes citados pelo The Guardian terão ido às urnas cerca de 3,6 milhões de eleitores), governa contra a vontade do seu povo, que se recusou a participar na farsa eleitoral que tentou impor. E a razão pela qual é uma farsa podem encontrar neste bom resumo de Rui Cardoso, onde se mostra tudo o que não pode ser uma eleição democrática. Por isso mesmo, até organizações de esquerda que apoiaram Chavez no passado apelaram à abstenção. Maduro vai acabar por partir. Pelo voto ou pelo sangue, que é assim que a história sempre foi. Quem o substituirá será, muito provavelmente, a mesma corja que governava quando os atropelos à democracia na Venezuela eram indiferente para o mundo. Mas o facto de não haver melhor alternativa também é responsabilidade dos que temeram viver com a crítica sem a qual todos os regimes definham.