A tempo e a desmodo
Henrique Raposohenrique.raposo79@gmail.com
A Grécia não inventou a democracia
Lamento, mas não devemos a democracia aos gregos
As pessoas que defendem o apoio vitalício à falta de transparência grega apresentam poucos argumentos sólidos e muitos estados de alma lunáticos. Estes estados de alma têm um propósito: abastecer uma presunção de superioridade moral e diabolizar aqueles que cometem a imprudência de acreditar na palavra das restantes dezoito democracias do Eurogrupo. O meu estado de alma preferido é o seguinte: a Grécia é o berço da democracia, logo temos de apoiá-la em nome dessa dívida civilizacional! Eu não queria ser chato, mas a Grécia não inventou a democracia constitucional (ou república) tal como nós a concebemos no Ocidente desde o final do século XVIII. Como recorda John Dunn em “Setting the People Free”, existe um abismo inconciliável entre a moderna democracia republicana baseada em Montesquieu, Hume ou Adams e a velha demokratia dos gregos. Aliás, o mestre Benjamin Constant consagrou logo esta ideia no clássico “A Liberdade dos Antigos comparada com a Liberdade dos Modernos”: a liberdade dos antigos (demokratia) impunha o jugo da maioria sem restrições constitucionais, ou seja, era o germe da tirania da maioria. Além disso, fomentava um permanente estado de excitação política, porque não admitia a privacidade e o voto secreto, porque exigia a permanente participação do cidadão no espaço político (ágora). O cidadão só era livre se gritasse muito, se ocupasse a praça pública para fazer manifs de toga, se pegasse no equivalente do megafone para encher os ouvidos dos outros com a sua oratória. Vencia quem gritasse mais. Ora, a liberdade dos modernos (república) foi construída contra esta cacofonia despótica e a favor de um espaço privado (família, amigos, desporto, amor, leitura, viajar, etc.) que libertasse o cidadão da overdose política da ágora. Uma sociedade livre não pode estar sempre em estado de emergência político.
Os pais fundadores, sobretudo Madison, Hamilton e Adams, eram bem claros na separação entre república e democracia. Esta era sinónimo de despotismo sem freios e contrapesos, aquela domesticava o ideal democrático (um homem, um voto) através de um sistema de separação de poderes e de representatividade. Por outras palavras, a nossa democracia foi construída para impedir os vícios da velha democracia grega que, como salientaram Constant e Berlin, fizeram a sua aparição moderna na violência da revolução francesa e da revolução russa. E estes vícios não se ficam pela tirania da maioria, também se expressavam na ausência de previsibilidade e segurança. As marés mudam, o sentimento do vox populi é um animal caprichoso que pode deitar tudo abaixo num instante. Como dizia Hobbes, numa comunidade democrática pura ninguém está seguro a não ser por acaso. O nosso constitucionalismo moderno e as suas instituições (União Europeia incluída) foram pensados para impor um alicerce de confiança e previsibilidade debaixo da inerente volatilidade democrática.
Nem por acaso, Tsipras e Syriza têm todos os vícios da liberdade dos antigos. Isto é evidente na questão da confiança e previsibilidade. Já ninguém confia em Tsipras; diz uma coisa em Bruxelas, diz outra coisa em Atenas; é um homem intoxicado com a vaidade oratória da velha ágora ateniense e está à beira de consagrar o velho sonho de todos os radicais de esquerda, os grandes herdeiros da liberdade dos antigos: retirar um país da União Europeia, essa velha lacaia do capitalismo.