Henrique Raposo

A tempo e a desmodo

Henrique Raposo

Inferno branco

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Quando a Escandinávia era o Médio Oriente

Quando a Escandinávia era o Médio Oriente

O nosso arquétipo do inferno é marcado pelo fogo e luz quente dos quadros de Hieronymous Bosch, Mathewes Grunewald ou Pieter Bruegel. Mas convém nunca esquecer a intuição de Dante: o centro do inferno não é quente, é gelado; a essência infernal não é a labareda e o traço quente, mas sim o gelo e a luz fria. Ora, esta é só uma das razões que elevam os livros do islandês Halldor Laxness à condição de parábolas quase perfeitas da condição humana: o inferno, esse espaço onde as escolhas morais são um luxo, tem no deserto gelado do norte a sua representação pictórica mais adequada. Além deste poder iconográfico, há em Laxness um poder historiográfico, digamos assim: quando pensamos em anarquia, colapso de uma sociedade, rapina, os desertos de areia do Médio Oriente e África emergem logo como cenários obrigatórios.

Os romances de Laxness, como “O Sino da Islândia”, recordam-nos que o perfeitinho norte escandinavo também teve os seus momentos à Médio Oriente. O inferno também pode habitar os desertos brancos, a tundra

Os colapsos hobbesianos do nosso tempo têm esse sabor meridional, essa textura arenosa e essa cor castanha. Os romances de Laxness como “O Sino da Islândia” recordam-nos que o perfeitinho norte escandinavo também teve os seus momentos à Médio Oriente. O inferno também pode habitar os desertos brancos, a tundra.

Em “O Sino da Islândia”, Laxness coloca-nos na viragem do século XVII para o século XVIII, época em que a Islândia era um inferno gelado controlado pela rapina e pelo desprezo cultural do colonizador dinamarquês. Esta Islândia assemelha-se a uma colónia penal habitada por bêbados e vagabundos moídos pela fome; é um cenário grotesco habitado pela leprosa “cuja cara fora comida”, pela velha de “dedos expostos”, por corcundas, inválidos, ladrões marcados pelo ferro quente, por raparigas que olham com medo para qualquer estranho; é um cenário marcado pelos corpos abandonados, por pântanos onde se afogam as crianças que as famílias não conseguem alimentar, pelas crianças vendidas aos holandeses. Morre-se de fome. Come-se o couro dos sapatos. Uma linha de pesca é um palácio. Há insegurança endémica. É um mundo onde a bondade é um perigo (ninguém dá uma taça de leite ou uma cavaca para a lareira). No entanto, tal como nos quadros de Hieronymous Bosch, Mathewes Grunewald ou Pieter Bruegel, sentimo-nos atraídos pela estranha beleza do mal. Aliás, quando uma das personagens foge e acaba como soldado do imperador alemão, fica-se com a ideia de que “O Sino da Islândia” é um “Barry Lyndon” visceral e filmado no downstairs e não no upstairs, filmado não com a frieza geométrica de Kubrick mas com o fervor febril de Bosch.

Temos assim um povo derrotado, humilhado, amoral e sem memória da grandeza da sua história e literatura. Laxness coloca as duas personagens principais nos polos opostos deste espetro: Jon Hreggvidsson é um ser miserável e amoral; limita-se a sobreviver e a escapar às autoridades que o querem executar; Arni Arnaeus é um colecionador de arte que varre a Islândia em busca das sagas islandesas, uma glória da literatura mundial que tem de ser recolhida e compilada para que os islandeses recuperem o seu orgulho nacional através da beleza da sua poesia. Claro que para Jon Hreggvidsson e para os seus tudo isso é incompreensível. Aliás, Arni Arnaeus recolhe um dos pedaços das sagas debaixo da cama da mãe de Jon Hreggvidsson, no meio de lixo, palha molhada e roupa imunda. A beleza é para Jon um não assunto: “ninguém queria ouvir o violinista, por isso cortaram-lhe as cordas do violino”. O inferno é branco e frio; o inferno não é areia, é uma variação da água.