JUSTIÇA
Sócrates apanhado em escutas antes de haver Operação Marquês
APANHADO O inquérito-crime Monte Branco, que já tinha intercetado de forma fortuita conversas de Pedro Passos Coelho, também acabou por apanhar José Sócrates nas escutas FOTO JOSÉ CARLOS CARVALHO
Empresário Carlos Santos Silva estava a ser investigado no caso Monte Branco quando foram intercetadas conversas com o ex-primeiro-ministro sobre o apartamento que ocupou em Paris
TEXTO MICAEL PEREIRA
Foram escutas fortuitas. Nessa altura, José Sócrates ainda não era alvo das interceções do Departamento Central de Investigação e Ação (DCIAP). Era de Carlos Santos Silva, empresário da construção civil e administrador de uma empresa do Grupo Lena, que o procurador Rosário Teixeira andava atrás, no decurso da investigação sobre um mega-esquema de fraude fiscal e branqueamento de capitais conhecido como Monte Branco, quando surgiram escutas com o ex-primeiro-ministro que levantaram suspeitas ao Ministério Público. Santos Silva fazia supostamente parte da lista de clientes de Francisco Canas, um comerciante com uma loja na Baixa de Lisboa conhecido por “Zé das Medalhas” que possuía um esquema paralelo de lavagem de dinheiro, recebendo grandes somas em notas e garantindo depósitos de valor equivalente em contas na Suíça.
De acordo com uma fonte judicial, dois dias antes de o DCIAP abrir formalmente, a 19 de julho de 2013, a Operação Marquês, o inquérito-crime em que Sócrates está indiciado por corrupção, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais, o ex-primeiro-ministro foi apanhado na investigação ao caso Monte Branco a ligar para Carlos Santos Silva dizendo que ia no dia seguinte para Paris e perguntando-lhe sobre um determinado assunto mas evitando referir nomes. Segundo a mesma fonte, Santos Silva terá respondido que ia estar em Paris na segunda-feira seguinte para assinar contrato. Ter-se-ão seguido outras conversas, relativas a um apartamento na capital francesa que estava, supostamente, a ser ocupado pelo antigo chefe de governo.
Os investigadores notaram um “especial cuidado” por parte de Sócrates e Santos Silva quando falaram sobre o assunto, usando uma linguagem considerada como meio encriptada. O Ministério Público especulou que pudesse tratar-se de obras ou de uma eventual venda do apartamento, decidindo aprofundar a recolha de informação sobre o imóvel em causa. Nessa altura, no verão de 2013, quando decidiram abrir o inquérito-crime da Operação Marquês, já possuíam toda a informação bancária relativa às transferências feitas por Carlos Santos Silva para comprar o apartamento da Avenue du President Wilson por quase 2,9 milhões de euros e para fazer face a despesas extra com a compra de móveis e aos encargos com o condomínio.
CRUZAMENTO O Ministério Público detetou que Carlos Santos Silva tinha pago duas faturas de 30 mil euros e 29 mil euros no Sheraton Pine Cliffs no Algarve em agosto de 2010 e agosto de 2011, sendo que havia notícias de que Sócrates tinha estado nesse hotel nas mesmas alturas. Depois, cruzou isso com escutas do processo Monte Branco FOTO JOSÉ CARLOS CARVALHO
As escutas importadas do Monte Branco foram cruzadas rapidamente com outras informações relativas a Santos Silva, suspeito nesse inquérito-crime. O empresário da construção civil tinha comprado três casas à mãe do ex-primeiro-ministro entre 2011 e 2012 por 750 mil euros. Mas não só: Santos Silva andava a pagar valores elevados a agências de viagens e a hotéis, incluindo duas faturas de 30 mil euros e 29 mil euros ao Sheraton Pine Cliffs, no Algarve, em agosto de 2010 e em agosto de 2011, coincidindo com notícias sobre estadas de Sócrates na mesma altura nessa unidade de luxo no Algarve.
Ainda sem pedidos de autorização ao juiz de instrução Carlos Alexandre para colocar Sócrates sob escuta, nos primeiros dias da investigação da Operação Marquês surgiram outras interceções importadas do processo Monte Branco que revelaram que Santos Silva poderia estar a pagar as despesas de férias do ex-primeiro-ministro. Numa delas, com data de 23 de julho de 2013, Santos Silva perguntava ao amigo para onde queria ir e em que datas, dizendo-lhe que a sua mulher trataria das coisas com a agência de viagens.
O regresso do professor Morais
Outras das escutas do Monte Branco que foram consideradas interessantes tinham a ver com António José Morais, professor de Sócrates em quatro das cinco cadeiras que o ex-primeiro-ministro fez na Universidade Independente e que lhe permitiram obter o grau de engenheiro civil a meados dos anos 90.
Intercetadas também em julho de 2013, entre os dias 16 e 22, essas conversas davam conta de uma eventual negociação entre Morais, Carlos Santos Silva e Sócrates, sendo que os investigadores admitiam não entender bem do que se tratava. Consideraram-nas de qualquer forma suspeitas, uma vez que Morais já tinha sido arguido no processo de corrupção Cova da Beira, um caso que envolveu o nome do ex-chefe de governo quando este era secretário de Estado do Ambiente do primeiro governo de António Guterres e quando, ao mesmo tempo, frequentava a Universidade Independente.
António José Morais viria mais tarde a protagonizar um dos episódios mais insólitos da Operação Marquês, quando Sócrates e Santos Silva já se encontravam ambos em prisão preventiva. O antigo professor do ex-primeiro-ministro teve encontros com a mulher, um primo e um funcionário de Carlos Santos Silva em fevereiro de 2015 que levaram a advogada do empresário, Paula Lourenço, a apresentar uma queixa-crime contra ele e a expor o assunto ao procurador Rosário Teixeira, que coordena a Operação Marquês.
De acordo com essa denúncia, António José Morais contactou Inês do Rosário, mulher de Carlos Santos Silva, e o seu primo Manuel Santos Silva, professor catedrático da Universidade da Beira Interior, para alegadamente os pressionar de modo a que o arguido alterasse o seu depoimento num interrogatório a que iria ser sujeito dentro de dias, incriminando Sócrates e, com isso, evitando que a sua companheira viesse a ser constituída arguida. Rosário Teixeira acabou por mandar abrir um processo autónomo em março de 2015, por indícios dos crimes de coação agravado, suborno, favorecimento pessoal e violação de segredo de justiça.