Turquia

“Tenho de admitir que acreditámos num milagre”

Presidente Erdogan venceu as presidenciais mas poderá ter de manobrar com mais cuidado do que antes a oposição no parlamento Foto Aris Messinis/AFP/Getty Images

Presidente Erdogan venceu as presidenciais mas poderá ter de manobrar com mais cuidado do que antes a oposição no parlamento Foto Aris Messinis/AFP/Getty Images

Com todos os recursos do Estado disponíveis, 181 horas de televisão a si dedicadas e estratégias de cacique com raízes de 15 anos, Erdogan não conseguiu, mesmo assim, a esmagadora maioria que desejava no parlamento turco. A oposição uniu-se contra ele mas é preciso que assim se mantenha para que o parlamentarismo permaneça vivo na Turquia. Quais são as suas estratégias?

Texto Ana França e Helena Bento

“Tenho de admitir que uma grande parte da população acreditou que poderia haver um milagre.” Murat Yildiz, cientista político e colunista turco de 44 anos que vive em Ancara, na Turquia, resume bem as esperanças, entretanto esmorecidas, de todos aqueles que acharam que Recep Erdogan iria capitular, depois de 15 anos no poder, perante uma oposição improvável mas eficaz. “Não aconteceu”, diz Murat Yildiz, assinalando o óbvio como se precisasse de o fazer para poder interiorizar, aceitar. Erdogan venceu as eleições presidenciais de há uma semana com 52,6% dos votos, provavelmente menos do que ele esperava, mas o suficiente para governar nos próximos cinco anos.

Yildiz, que não diz em quem votou mas garante que não foi, “nem será nunca”, em Erdogan, não acredita que tenha havido “uma fraude em larga escala”, conforme denunciou a oposição, mas também não acha que os resultados sejam totalmente limpos. “As eleições não decorreram em condições justas e de igualdade. Erdogan e o AKP apropriaram-se da televisão estatal e de outros media e dos recursos do governo. Houve irregularidades nos votos e na contagem dos votos e é provável que isso se tenha refletido nos resultados.”

Mas há quem se reveja em Erdogan, no caminho que ele tem traçado para a Turquia e no futuro que visiona. Sevket Zaimoglu, 45 anos, funcionário público em Ancara, votou em Erdogan como o fez em todas as eleições desde 2002 e não tem dúvidas em considerar que o Presidente turco “é o único líder capaz de dirigir a Turquia em tempos turbulentos”. “Quando soube que ele tinha vencido senti-me aliviado e feliz pela minha família e pelo meu país. A vitória dele significa que podemos agora focar-nos naquilo de que o nosso país precisa e o nosso país precisa é sobretudo de segurança”, diz ao Expresso.

Todos os poderes que queria

Erdogan venceu a corrida presidencial quando algumas projeções o obrigavam a uma segunda volta, mas é no parlamento que mais se pode vir a notar alguma fragilidade no seu poder. A coligação do seu partido, o AKP (Partido do Desenvolvimento e Justiça), com o MHP (Partido Movimento Nacionalista), só conseguiu 42,5% dos votos nas eleições para o parlamento (343 lugares num total de 600) e por isso há analistas que não veem outra saída para o sucesso do seu mandato que não seja a de aceitar sentar-se à mesa com as várias forças partidárias: ficou claro que quase metade do país quer que ele ouça essas forças em questões como a recuperação económica, o fim do estado de emergência e o regresso de algumas liberdades individuais perdidas sob este. Erdogan já prometeu levantar o estado de emergência e Murat Yildiz acredita que acabará por fazê-lo, mas só porque “já tem todos os poderes que queria”. Além disso, é uma “exigência dos investidores estrangeiros e é preciso não esquecer que mais de 60% do mercado de ações na Turquia está na mão de estrangeiros”.

Muharrem Ince, dos republicanos, fez campanha dizendo ser um “filho do povo” e mais próximo deste do que Erdogan Foto Umit Bektas/REUTERS

Muharrem Ince, dos republicanos, fez campanha dizendo ser um “filho do povo” e mais próximo deste do que Erdogan Foto Umit Bektas/REUTERS

Os republicanos de Muharrem Ince conseguiram para o parlamento 22,6% dos votos (ele sozinho obteve 30,85% na corrida à presidência) e o recém-formado İyi (Partido Bom), de Meral Akşener, conseguiu 10%, o que é impressionante para um partido que nunca antes tinha concorrido às eleições. Os dois partidos conseguiram, respetivamente, 146 e 43 assentos. “Uma ação contra Erdogan é difícil, já que ele concentra cada vez mais poder. Temos de saber que é esta a realidade mas toda a gente está muito motivada com os resultados que Muharrem conseguiu, mesmo tendo perdido. Ele é mesmo boa pessoa, tem imenso apoio e cada vez terá mais. É o princípio de alguma coisa”, diz Tugba Carvalho, realizadora de cinema turca casada com um português que partilhou com o Expresso fotografias e vídeos dos comícios muito concorridos de Ince.

Já o maioritariamente curdo Partido Democrata concorreu sozinho, com o líder preso, e mesmo assim conseguiu 11,7% dos votos, ou 67 assentos. Foram eles a surpresa destas eleições e a palavra de ordem dentro do partido é fortalecer a luta pelos direitos das minorias, curda e não só. O líder, Selahattin Demirtas, está preso há um ano e meio, à espera do seu julgamento por suspeitas de terrorismo. Se for condenado pode enfrentar uma pena de 142 anos. Aycan İrmez, ex-deputada pelo partido Partido Democrata e hoje organizadora de campanha, considera que com este resultado o partido está numa posição de “pressionar o governo” e de “conseguir um palco para as lutas das minorias”. “Conseguimos uma grande votação apesar de tudo o que foi feito para nos silenciar e agora voltamos a ter um púlpito para defender os direitos dos curdos mas principalmente os direitos de todos os turcos que nos últimos anos tiveram que aceitar cortes nas suas liberdades. Pessoalmente, espero que o partido consiga destronar a ideia de que a soberania sobre as instituições e a política seja sempre dos homens”, diz ao Expresso.

Selahattin Demirtas, líder do partido pró-curdo, está há um ano e meio na prisão à espera de ser julgado por atos terroristas Foto Umit Bektas/REUTERS

Selahattin Demirtas, líder do partido pró-curdo, está há um ano e meio na prisão à espera de ser julgado por atos terroristas Foto Umit Bektas/REUTERS

O partido islâmico Felicity Party ou Saadet, uma reencarnação do Partido do Bem-Estar que, em 1997, deu à Turquia o seu primeiro governo islâmico, só conseguiu 671 mil votos, ou 1,4%, mas foi essencial para que o grupo de três partidos que se uniram contra Erdogan - todos os referidos à exceção do pró-curdo - pudessem eleger deputados por distritos onde nunca antes tinham tido hipóteses por serem zonas fortemente pró-Erdogan. O líder do Saadet, antes tido como um dos mais conservadores de todo o espectro político turco, acabou por se assumir como “a voz islâmica pelo Estado laico”. “Não atingimos o resultado que queríamos mas vamos continuar a lutar pelas pessoas que desejam seguir o Islão dentro de uma Turquia onde a lei seja respeitada, o estado de Direito reinstituído, os direitos básicos respeitados e a liberdade de imprensa restaurada”, disse Temel Karamollaoğlu à agência Reuters pouco depois de conhecidos os resultados.

“Pragmático e maquiavélico”

O que importa entender é em que áreas poderá a oposição, robustecida por uma campanha mais apelativa do que era expectável, capitalizar-se politicamente. Deniz Agah, que além de ser jornalista e escrever para publicidade também é militante do İyi e participou na campanha eleitoral do partido, explica: “Vamos continuar a apostar na divulgação para que todos saibam que há outro partido de direita além do AKP. Não sei se vamos manter-nos coligados com os restantes partidos da oposição. A ideia agrada-nos mas os republicanos navegam em águas perigosas. Preferimos aguardar para ver como tudo evolui e só depois agir”.

Sobre a possibilidade, avançada por alguns analistas, de Erdogan vir a procurar entendimentos com o bloco da oposição ou alguns partidos em específico para garantir a sua própria sobrevivência política, diz que “ele vai tentar captar o İyi para a sua aliança e retirar-nos da coligação da oposição, mas não acho que o consiga”. “O AKP está mesmo focado em alienar o CHP e causar divisões entre a oposição.” Murat Yildiz tem a mesma opinião mas expressa-a de uma forma menos politizada - e menos simpática também: “Erdogan é pragmático e maquiavélico. Aliou-se desde o primeiro dia com quem achou mais conveniente, da União Europeia aos liberais, curdos e nacionalistas. Para alcançar os seus objetivos, para sobreviver, ele fará alianças com quem for preciso”.

Com 343 assentos, a coligação de Erdogan pode aprovar nova legislação, mas os dois aliados estão aquém dos 360 votos necessários para substituir o atual sistema parlamentar pelo sistema presidencialista aprovado no referendo de 2017. É provável que tentem convencer um dos partidos da oposição a juntar-se-lhes, mas não é claro o desfecho. Sevket Zaimoglu considera essencial que essa mudança aconteça. “Acho que a é melhor forma de garantir que a democracia não volta a ser interrompida”, começa por dizer, e depois explica-se. “Antes do advento do AKP, os militares e empresários exerciam uma forma de tutela sobre a política. O sistema parlamentar permitiu à elite controlar os partidos políticos. Como eram necessários votos de confiança para estabelecer governos, os parlamentares eram vistos como peões que podiam facilmente ser comprados ou vendidos.”

“Uma reencarnação turca do salazarismo”

Do mesmo modo que concorda com a mudança de um sistema parlamentar para um presidencial, Sevket Zaimoglu também aceita as purgas periódicas que Erdogan tem vindo a conduzir desde o golpe de Estado falhado de 2016, em meios que acredita terem ligações ao clérigo Fethullah Gülen, hoje exilado nos EUA, que acusa de ter sido responsável pelo golpe. “Os Gülen não são um grupo mítico ou obscuro. No meu meio, que é conservador e religioso, há muitas pessoas que têm familiares, amigos ou colegas que foram membros daquele grupo ou pelo menos simpatizantes. São pessoas verdadeiramente perigosas e o seu fanatismo fá-las ser capazes de fazer coisas más.” Há cerca de 50 mil pessoas presas por suspeita de terem participado na organização desse golpe e mais de 100 mil perderam os seus empregos no sector público, segundo números oficiais corroborados por organizações não-governamentais como a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch.

Uma bandeira com o rosto de Kemal Ataturk, no meio de uma manifestação pró-republicana, que defende uma Turquia mais secular Foto Sedat Suna/EPA

Uma bandeira com o rosto de Kemal Ataturk, no meio de uma manifestação pró-republicana, que defende uma Turquia mais secular Foto Sedat Suna/EPA

“Não há uma guerra na Turquia, o que é que está aqui a fazer?” Foi esta a pergunta que lhe fizeram quando chegou a Portugal, fugido não de uma guerra aberta mas daquilo que considera guerra mesmo assim. Não quer dar o nome ao Expresso este professor turco atualmente a lecionar em Portugal, por medo de represálias contra a sua família, parte dela ainda na Turquia. “É difícil explicar a um cidadão europeu, que associa o conceito de refugiado com um conflito aberto como no Iraque ou na Síria, mas na Turquia hoje existe uma guerra contra quem pensa de forma diferente. Milhares de pessoas estão presas e isso também é uma espécie de guerra”, diz o professor, que prefere ser identificado como “refugiado em Portugal”. Houve uma altura em que “era parte do 1% que vivia realmente bem” e que “defendia a ideia de que os países deviam defender as suas fronteiras ‘dos outros’”, mas “olhem para mim agora, um produto das mudanças na minha sociedade, um refugiado que pagou a traficantes de pessoas para vir para um país com o qual não tinha nenhuma ligação”, escreve numa longa carta enviada por e-mail. Este professor optou por traçar um paralelo entre a história do nosso país e a da Turquia para explicar a sua situação a quem lhe pergunta os motivos da sua fuga. “Portugal viveu sob Salazar quase meio século e as pessoas aqui sabem o que é viver dentro de um regime autoritário que nunca esteve em guerra. Fica mais fácil quando lhes explico que estamos a viver uma reencarnação turca do salazarismo.”

Um elefante numa loja de porcelana

A economia turca está perto do colapso e analistas como Fadi Hakura, do think thank britânico Chatham House, antecipam uma crise económica nos próximos cinco anos. “Erdogan vai continuar a optar por medidas populistas iguais às que arruinaram a economia do país”, afirmou ao “Washington Post”. Ao longo dos últimos anos, a resposta de Erdogan à crise foi recusar-se a aceitar as altas taxas de juro exigidas pelos seus credores. Continua a injetar dinheiro barato na economia e a investir em grandes projetos de obras públicas. “A economia irá de mal a pior, tenho a certeza disso, sobretudo depois de Erdogan ter captado votos com a promessa de um salário extra para os aposentados. Temos alimentos mais caros do que na Europa e o combustível mais caro do mundo”, diz Murat Yildiz. “A Turquia nunca esteve tão polarizada como agora. Tinha uma tradição imperial de coexistência mas agora está dividida ao meio como um melão e a culpa é de Erdogan. Quanto mais se sente em perigo, mais divide a sociedade”, acrescenta. Um outro problema é o caminho até à entrada na União Europeia, que sempre foi tortuoso e não ficou mais fácil. Um relatório sobre a adesão do país ao bloco, publicado a 26 de junho, dois dias depois das eleições, reforça as reticências da UE: o pobre registo na área dos direitos humanos, a prisão de jornalistas e atores políticos, alguns com dupla nacionalidade.

Na versão em inglês do jornal turco “Yeni Safak”, İbrahim Karagül, um colunista que frequentemente defende o posicionamento de Erdogan no plano das relações internacionais, escrevia que “enquanto a Alemanha e a Áustria estão a criar líderes fortes através de ideias fascistas, países como a Turquia, os EUA, a Rússia e a China estão a produzir líderes fortes com capacidades para mudar a História” e Sevket Zaimoglu concorda: “A ordem global é hoje mais instável do que era antes do 11 de Setembro e consigo apontar várias falhas aos EUA. Acho que o mundo é um lugar muito mais perigoso hoje do que era há 20 anos e é por isso que as pessoas estão a voltar-se para líderes fortes”. Admitindo que antes de Erdogan a Turquia não era “a melhor democracia do mundo”, mas ao menos “as pessoas confiavam nas instituições”, Murat Yildiz apresenta uma definição diferente daquilo que significa ser-se forte. “Não acho que Erdogan seja um líder forte porque para ser um líder forte é preciso ser-se respeitado. Erdogan há muito que perdeu o respeito a nível internacional, por exemplo. Se por forte deve entender-se bully, então sim, é forte. Mas eu diria que ele é mais como um elefante numa loja de porcelana. Afastar os oponentes do caminho, apontar o dedo aos outros e gritar não faz de ninguém um grande líder.”