ENTREVISTA

Entre Deus e o Diabo

RICARDO PEREIRA Protagonizou a primeira cena sexual entre dois homens na TV portuguesa FOTO JOÃO LIMA

RICARDO PEREIRA Protagonizou a primeira cena sexual entre dois homens na TV portuguesa FOTO JOÃO LIMA

O português que conquistou as novelas do Brasil (e não só) e que ficou na história como o primeiro protagonista estrangeiro da Globo, volta a dar que falar ao representar a primeira cena de amor entre dois homens na telenovela de época “Liberdade, Liberdade”, exibida na SIC. Há 13 anos a viver no Brasil diz que está com um jeito de ser mais carioca. Com mais samba e menos fado.

TEXTO BERNARDO MENDONÇA

O encontro aconteceu na galeria de arte urbana Underdogs, horas antes de Ricardo Pereira subir à cena com a peça “Meu Deus”, no Teatro Tivoli, em Lisboa, onde o ator esteve umas semanas na pele de... Deus junto com a atriz brasileira Irene Ravache que fazia de sua psicóloga. Se Deus não é, o ator tem parecido um ator omnipresente tal é a quantidade de trabalhos em que é possível vê-lo aqui e do outro lado do Atlântico. Além do teatro, o filme “Cartas de Guerra”, do Ivo M. Ferreira, onde entra tem estado em cartaz e, na SIC, está neste momento ser transmitida a telenovela de época “Liberdade, Liberdade”, que é uma viagem ao Brasil do século XVIII. No meio disto tudo Ricardo ainda entrou no novo filme de Leonel Vieira, “Mulheres”, filmado entre Lisboa e o Rio de Janeiro, e que se destaca como a primeira longa metragem realmente co-produzida entre os dois países. Começámos a conversa com a série onde representa um capitão que rompe com tudo o que tem feito na televisão até agora.

Por cá está prestes a ser exibida na telenovela “Liberdade, Liberdade” [na SIC] a cena de sexo que protagonizou com o ator Caio Blatt, capaz de provocar grande polémica no Brasil, por ter sido a primeira cena íntima homossexual entre dois atores numa telenovela da Globo. Foi uma cena marcante para si?

É um divisor de águas não só no meu caminho, e no corte com determinadas personagens. Tenho agora com a oportunidade de fazer personagens mais arrojadas e diferentes. Se bem que fazer um mocinho ou galã é dificílimo. Manter a coerência de um personagem em que normalmente é o último a saber das coisas, e que tem sempre uma carga emocional muito forte durante muitos capítulos, é difícil. Tenho tido oportunidade de fazer personagens mais caóticos, mais complicados, mais pesados, com mais camadas, mais densidade, no cinema e no teatro. E isso é bom. E poder fazer esta personagem na televisão cortou com tudo. Foi uma prenda.

Andava à procura disso?

Este papel em si foi um acaso. Mas quem me conhece sabe que procuro sempre personagens diferentes e distantes de mim. Os mais difíceis de fazer. E nem sempre aparecem logo. Porque para chegares a um determinado lugar tens que passar por outros. Nos primeiros capítulos, não sabia que o capitão Tolentino ia ter uma relação com outro homem. Sabia que era um homem duro, viril, sem piedade nenhuma, fatal, mau ao ponto de matar quem se pusesse no caminho dele.

Como se prepararam para uma cena desses, tão delicada? Foi difícil?

Não há uma preparação particular. Claro que foi uma cena difícil. Como todas são. Eu e o Caio fomos desenvolvendo as personagens para aquele caminho e elas teriam que ter o seu clímax, o seu apogeu. Não fazia sentido ser de outra maneira. Nós queríamos fazer uma cena que fosse de amor. E não meramente carnal. Que fosse vista sem qualquer preconceito. O que havia de favorável nesta cena é que não era o primeiro trabalho que fazia com o Caio, é meu amigo pessoal, há química artística, a mulher dele foi meu par romântico numa peça de teatro. E só queríamos que aquela cena corresse bem. E eu imaginei que a cena teria uma aprovação brutal, Poderia não ter acontecido assim. E quando isso acontece ficas feliz e sentes que tocaste o público e como ser humano percebes que a sociedade está mais aberta à diferença. E isso é bom.

O Brasil não tem preconceitos sobre estas questões?

Claro que há de ter. Como nós em Portugal temos. O que quero dizer é que nem o autor nem nós fizemos esta cena para questionar esse preconceito. Mas nós todos, em todo o mundo, ainda temos este preconceito muito presente. O que acho que esta cena tem como papel é fazer as pessoas pensar “espera lá, se calhar devemos respeitar as orientações de cada um e deixar que direcionem a sua vida para onde quiserem”. Sem levantar bandeira nenhuma ou para abrir os olhos das famílias. Até porque as famílias hoje são todas diferentes.

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A aceitação desta cena revela que as nossas cabeças estão muito mais abertas para a diferença

Viu esta cena em família?

Vi com a minha mulher, com o Caio [Blat] e a mulher, o diretor Vinicius e a mulher, e o Mateus Solano e a mulher. A cena foi de tal ordem bonita e elogiada por todas as faixas etárias, por todas classes sociais. Foi uma unanimidade tão grande. A aceitação desta cena revela que as nossas cabeças estão muito mais abertas para a diferença.

O capitão Tolentino é uma personagem com contrastes e tem uma densidade que encontramos mais no cinema...

Sim. Talvez. Esta é uma telenovela de curta duração. Ou, se quisermos, é uma série. Mas mais longa com sessenta e tal episódios. Mas é toda feita como se faz cinema. A luz muda para cada plano, há uma única câmara a filmar. Há toda uma preparação para esta série muito similar ao cinema. Tive aulas de equitação, esgrima, luta, workshops de época, formas de estar, de comer, frequentei palestras sobre os períodos históricos e as figuras que iríamos abordar. O que a Globo pretende com estes produtos exibidos às onze da noite é apresentar outras temáticas e abordagens e questionamentos. Mais arrojadas artística e cenograficamente. Procura captar um público que às vezes viaja pelo cabo à procura de outras séries, talvez americanas, inglesas.

Ficou a conhecer melhor a história do Brasil?

Sem dúvida. Acima de tudo, até melhor a história de Portugal. Porque nós em Portugal estudamos que a nossa corte, o nosso rei, vai para o Brasil totalmente a fugir das invasões francesas, com o apoio da armada inglesa. Mas corta para [o que seguiu mais tarde no nosso país]. Não sabemos o que se passou lá. E o que eu sinto que as pessoas estão a amar nesta série. É os portugueses poderem agora conhecer como era a vida dos portugueses nessa época no Brasil. Como era esse Brasil na época. As pessoas que me dizem que estão a amar “Liberdade” estão a redescobrir algo que não conheciam.

Não é a primeira vez que chegam a Portugal séries e novelas dessa época no Brasil. Recordo “Escrava Isaura”, “Xica da Silva”, “Sinhá Moça”. E com reconhecimento por cá...

As telenovelas de época são sempre interessantes. Mas quando tens um produto que se aproxima mais da série, como este, com a veracidade com que é construída, e acima de tudo, do retrato que o autor quer passar, que é muito mais próximo do real, é muito mais apelativo para o espectador.

Quer com isso dizer que “Liberdade, Liberdade” é mais apurada a recriar uma determinada época?

Ela faz um retrato mais fiel. Quando se produz uma novela mais tradicional tem que se ir pelo lado romântico, desenvolver outros núcleos de história. Esta aborda Vila Rica, em Minas Gerais, que era a sede da extração do ouro, onde havia o dinheiro, a troca comercial, onde acontecia de verdade o Brasil da época com todas as questões à sua volta. Aqui abordam-se várias temáticas: o preconceito, a escravidão, como era realmente a sociedade da época. Como era sujidade, o toque, o sexo na época, como os escravos viviam com os donos deles, como era alforria. O autor quis tocar em vários pontos destes.

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Quando cheguei ao Brasil havia a imagem que éramos um país constituído por aldeias, que as senhoras se vestiam todas de preto, que tinham algum bigode

A ideia anedótica de que Portugal é um país provinciano com as mulheres de buço e os são gordinhos, baixos e de bigode está ultrapassada?

Quando cheguei ao Brasil havia a imagem que éramos um país constituído por aldeias, que as senhoras se vestiam todas de preto, que tinham algum bigode. As pessoas mais viajadas não tinham tanto essa noção. Mas a nossa emigração que foi para lá, fisicamente, eram pessoas mais baixinhas. Os portugueses hoje em dia são muito mais altos. Quando me viram chegar, e antes de mim o Paulo Pires, com 1,80 e tal, olhos claros, perguntavam-se 'mas o que é isto?'. Porque a nossa população foi mudando fisicamente. Hoje em dia a maioria da nossa população não é baixa. Esse estereótipo era mais uma piada, uma brincadeira. Mas hoje em dia chegamos lá com bons livros, boa culinária, bons vinhos, bom azeite, musica, autores, atores, turistas, estudantes. E com líderes mundiais e presidentes apelativos. Nós portugueses estamos muito mais atrativos e virados para o mundo. E não era só os brasileiros, o mundo todo achava que nós éramos um país antigo. E isso mudou.

Vê-se como um embaixador do nosso país?

Eu necessariamente tenho que encarar que sou um embaixador de Portugal. E chego aos lugares mais longínquos do Brasil através de um canal de televisão, a Globo. É minha obrigação e dever ser embaixador do meu país. É o país onde eu nasci e do qual me orgulho.

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Às vezes vejo o meu filho com 4 anos a olhar para mim e a questionar-se 'porque é que aquela pessoa está a tirar uma foto com o meu pai?'

O facto de ser um rosto muito conhecido no Brasil obrigou-o a viver numa bolha, protegido dos fãs, da violência nas ruas?

Não. Tenho colegas meus atores, portugueses, que me perguntam como é que consigo ir à praia no [bairro do] Leblon ou na Costa da Caparica. Eu vou, com a minha família, os meus putos. As pessoas vêm ter comigo, tiram uma foto, ‘tá-se bem’. Vivo de pessoas. A minha profissão não me pode inibir de usufruir do mundo na sua plenitude. Às vezes vejo o meu filho com 4 anos a olhar para mim e a questionar-se “porque é que aquela pessoa está a tirar uma foto com o meu pai?”. Não deixo de fazer nada por causa da minha mediatização. Seja cá em Portugal ou no Brasil. Comecei a lidar desde muito jovem com uma série de coisas que podiam chatear-me. Se publicavam que tinha uma namorada num dia e outra noutro, não tinha um compromisso sério com ninguém e era jovem. Vivi bem a minha idade.

Tem 37 anos e é o único ator com os pés assentes nos dois países. Maria João Bastos também um pouco. Mas o Ricardo ainda mais. Soma 21 novelas, outros 20 e tal filmes. O que é um grande privilégio.

Como costumo dizer, sai-me do pelo.

Como explica esse sucesso e oportunidade? Vive de trabalho, de sorte, de uma ambição e procura?

É exatamente isso tudo. Estamos em 2016. O ano 2017 já está todo programado e hoje de manhã estava a programar 2018.

A sua carreira é pensada e gerida por um núcleo de pessoas, não é?

Sim. Eu tenho dois agentes aqui, um para trabalhos comerciais e outro para os artísticos, e tenho um assessor de imprensa. No Brasil tenho outro agente. Lá e cá tenho gestores de medias sociais. E cada pessoa tem vários tentáculos. Só no Brasil tenho uma pessoa focada a avaliar o cinema e a mandar-me guiões.

Há um lado seu de ambição. Para que tudo dê certo, não é?

Exatamente. Para não esperar que o telefone toque. Quero saber para onde a minha carreira vai. Obviamente que depois surgem outros convites. Que encaixo na agenda.

Há muito isso nos atores? Esperar que o telefone toque?

Talvez. E talvez haja quem faça como eu esta preparação in extremis para os trabalhos. No trabalho sempre fui de provocar o telefone tocar. Quero saber para onde vai a minha carreira, que se programa a longo prazo. Obviamente que ambiciono novas experiências, aqui e em outros países. Quero crescer artisticamente, com novos prismas. São esses questionamentos que me fazem trabalhar como ator. Se cair numa mesmice será terrível para mim. Sou um insatisfeito. Alguns trabalham chegam por convite, outros vou atrás, outros produzo. Tenho que estar antenado no meu mundo. Outras vezes programa o meu ano para descansar, outras vezes só para aprender.

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Os ordenados no Brasil não são Hollywood. Apenas é uma escala diferente

No Brasil os atores de televisão são muito mais bem pagos. Há uma grande diferença nos mundos artísticos...

Artisticamente e financeiramente as escalas são diferentes. Mas as diferenças não são muito grandes. O que há no Brasil é um mercado muito maior. O valor de um episódio de uma telenovela em Portugal, que é feito com muita qualidade, vale um décimo do valor de um episódio de uma novela na Globo. E temos que elogiar e enaltecer o nosso trabalho em Portugal que tem sido feito com muito amor e perseverança. E fazemos produtos com tal qualidade que foram vencedores de Emmy. O que é de louvar. Mas não se esqueçam que os preços e o nível de vida no Brasil é muito mais elevado. Os ordenados no Brasil não são Hollywood. Apenas é uma escala diferente.

É dos atores mais bem pagos no Brasil?

Não, nem nada que se pareça. A Globo produz dezenas de novelas, telefilmes e séries. É um país com duzentos milhões de habitantes e na televisão há muita gente, centenas de atores a protagonizar histórias.

Como é o seu dia a dia lá?

Tenho a praia a dois minutos da minha casa. Quando saio para deixar os meus filhos na escola eles passam pelo mar. É uma cidade em que passo o ano inteiro sem vestir uma camisola de manga comprida. O dia a dia lá é muito mais ligado à natureza. Tenho a floresta e a praia muito próxima. E isso é bom. Reconfortante. Parece que o dia demora mais a passar e que aproveitamos mais. Quando há gravações, raramente trabalho de manhã o que me deixa tempo livre para estudar, ler, fazer desporto ao ar livre, aproveitar a cidade. Tenho as rotinas de um pai normal. É dar o pequeno almoço aos filhos, levar as crianças à escola, ir treinar, fazer surf, vólei na praia, corrida na areia, crossfit com o meu personal trainer. Treino todos os dias. Quero estar em forma e inteiro para o trabalho e para a minha família, os meus filhos.

Que tipo de pai é?

Sou um pai ultra presente. Para eles estou sempre. Eles apanharam um pai que adora brinquedos, sou um perfeito amigo deles para lhes montar os castelos, arranjar as bicicletas, pintar não sei o quê.

A intensidade profissional, esse jogar em várias frentes não lhe rouba esse tempo para eles?

Não pode. Tenho que me organizar. Tenho que me virar e arranjar tempo. Sai-me do pelo. Às vezes deito-me às quatro da manhã após um dia de filmagens e às oito estou a levantar-me para deixar os filhos na escola. É uma questão de querer. Se eles vão para a natação, quero vê-los a nadar, vesti-los, ir à reunião de pais, etc. Foi para isso que quis ser pai, para acompanhar o crescimento. Ser pai é não te esqueceres de estar presente.Também tive uns pais assim, que me deram uma educação bestial.

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Gosto de apreciar o carioca a viver. Ele tem uma particularidade diferente, para ele está sempre tudo bem.

Que outros prazeres mundanos tem no Rio de Janeiro?

Beber água de coco é das coisas que mais me limpa e me dá uma vida interior. Gosto de apreciar o carioca a viver. Ele tem uma particularidade diferente, para ele está sempre tudo bem. Eu fiz esse mestrado lá, do 'está tudo bem', adotei isso para o meu estilo de vida.

Está mais carioca do que lisboeta?

O meu lado lisboeta já vive no espírito de está sempre tudo bem. Todos temos problemas, momentos tristes, mas o carioca vai ultrapassando, resolvendo, mas está sempre tudo bem. Mesmo quando está mal. E isso é bom. Para a nossa cultura isso é um ensinamento do caraças.

Está com menos fado e mais samba na vida?

Em relação à problemática da vida, completamente. O peso dos problemas não me contagia tanto. Estou mais resolvido, mais leve. A maturidade tem-me ajudado. Absorvi o espírito carioca, o problema não é um problema mas uma solução. É aproveitar o dia e amanhã logo se vê. O Brasil trouxe-me relatividade em relação à vida e não levar demasiado a sério determinadas coisas. As zangas, opiniões, os problemas. É estar sentado na praia do arpoador a bater palmas ao por do sol. Ou abraçar as pessoas de quem gosto ao final do dia. Isso é que interessa. Esse é o estilo de vida do carioca. Curtir a vida.

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