Alemanha
Chemnitz. “Cocktail de medo e preconceito” à sombra de Marx
O esfaqueamento mortal de um alemão, em cujas veias também corria sangue cubano, acendeu no domingo um rastilho de ódio e perseguição aos estrangeiros. Voltou a retórica da “migração da faca”, que Merkel tentou combater dizendo que os justiceiros não serão tolerados. Manifestantes de extrema-direita enfrentaram militantes antifascistas. Face à “vergonha” e ao “horror”, a solução pode ser “lutar pela democracia todos os dias”
Texto Hélder Gomes
“O que se está a passar na Alemanha é o resultado de um cocktail básico de medo e preconceito, com uma pitada do bom e velho excesso, servido frio sobre as fundações históricas do nacionalismo e acompanhado por uma visão muito tacanha do mundo.” É desta forma que Carolin Brune, investigadora na área da sociologia em Bielefeld, descreve ao Expresso os acontecimentos dos últimos dias em Chemnitz. Dos confrontos entre manifestantes de extrema-direita e de esquerda na cidade do leste do país resultaram 20 feridos, incluindo dois polícias.
Tudo começou no domingo, com o esfaqueamento de Daniel, um carpinteiro de 35 anos, filho de uma alemã e um cubano. Os suspeitos, um sírio e um iraquiano com pouco mais de 20 anos, estão ambos detidos. Os contornos do incidente fatal ainda não são claros mas o caso gerou uma onda de perseguições e ataques a estrangeiros. Nancy Larssen, que cresceu com Daniel, acusou os meios de comunicação social de desinformação, o que ajudou a incendiar os ânimos.
“É triste que nos media estejam apenas a dizer que morreu um alemão. É por isso que os neonazis e os hooligans estão nas ruas. Os media deviam descrever quem morreu, que cor de pele tinha. Se eles soubessem, não me parece que estivessem a provocar tantos estragos”, disse Nancy à emissora Deutsche Welle. Inicialmente, era cerca de uma centena de pessoas, mas rapidamente se chegou aos 800 manifestantes reunidos à volta do enorme busto do filósofo alemão Karl Marx, no centro de Chemnitz, que entre 1953 e 1990 se chamava precisamente Karl-Marx-Stadt.
A “MIGRAÇÃO DA FACA” E A “JUSTIÇA DE VIGILÂNCIA”
Na segunda-feira, eram já cinco mil os manifestantes de extrema-direita, com cerca de mil contramanifestantes de esquerda. Os dois grupos envolveram-se em confrontos, com arremesso de objetos e troca de insultos. De um lado, palavras de ordem contra a “inundação de requerentes de asilo” e algumas saudações nazis à mistura. Do outro, militantes antifascistas vociferando contra os outros e dando as boas-vindas aos refugiados. De um lado, elementos do movimento de rua de extrema-direita Pegida, do outro militantes Antifa.
“Se o Estado já não consegue proteger os cidadãos, as pessoas saem às ruas e protegem-se. É tão simples como isto! É dever do cidadão deter a letal ‘migração da faca’!”, escreveu no Twitter Markus Frohnmaier, do partido de extrema-direita Alternative für Deutschland (AfD, Alternativa para a Alemanha). Por seu turno, a chanceler alemã, Angela Merkel, alertou que a “justiça de vigilância”, a justiça pelas próprias mãos, não seria tolerada. Finalmente, a polícia, que tem sido alvo de muitas críticas, disse que não previa um número tão grande de manifestantes e confirmou estar a investigar alegados ataques a um afegão, um búlgaro e um sírio.
NA ALEMANHA COMO NOS EUA
“A pressa em culpar todos os estrangeiros pelo mau comportamento de muito poucos é a mesma na Alemanha e nos EUA. Aqui, na América, temos um crescente segmento fanático da população que realmente parece acreditar que todos os ‘mexicanos’ (independentemente de virem ou não do México) são violadores e bandidos. Na Alemanha, passa-se o mesmo, mas com refugiados africanos e do Médio Oriente. Em ambos os casos, a violência contra populações em situações precárias e vulneráveis supera de longe a violência que apenas um punhado deles comete”, analisa ao Expresso o estudante da Universidade de Amherst Joe Keady, no estado norte-americano de Massachusetts.
Seguindo os acontecimentos a partir de casa, Keady ficou impressionado com as imagens dos manifestantes concentrados junto ao busto de Marx.
Mesmo admitindo tratar-se de um ponto de encontro para eventos de todos os tipos, o estudante universitário aponta “a profunda xenofobia de uma multidão que está literalmente de pé na sombra da mais famosa e significativa declaração de internacionalismo da história moderna”. “A dissonância entre o cartaz [‘Criminosos. Estrangeiros fora!’] e as palavras esculpidas acima deles [‘Proletários de todo o mundo, uni-vos!’] é realmente impressionante e uma indicação de quão longe fomos na direção errada”, concretiza.
ORDEM DE EXPULSÃO VS. VERGONHA E HORROR
O administrador de sistemas Nils Wunsch, que vive em Dresden, a poucos quilómetros de Chemnitz, avisa que este foi “só o começo” e que poderão seguir-se os estados da Renânia do Norte-Vestefália e da Baviera, os dois mais populosos da Alemanha, ou a cidade de Berlim. Ao Expresso, Wunsch não hesita: “estas pessoas têm de ser expulsas do país e não têm o direito de viverem aqui.” “Não respeitam o nosso modo de vida, o nosso país, as nossas mulheres. Esta tem de ser a última vez que um refugiado mata os nossos homens e as nossas mulheres. Não podemos aceitar isto”, sentencia.
Garantindo “não ser um neonazi, nem ser de direita nem de esquerda”, o informático sublinha que “também há muitos problemas na Alemanha com as escolas, os jardins de infância, o sistema de pensões e o emprego”.
Já o assistente social Martin Eickhoff, que trabalha com pessoas com deficiência, diz-se “realmente envergonhado por viver na Alemanha” e “horrorizado com o aumento do ódio e da violência fascistas”. “Oponho-me a qualquer forma de intolerância e envolvo-me em atividades antifascistas todos os dias, porque a democracia não nos cai do céu. Temos de lutar por ela todos os dias”, afirma ao Expresso a partir do estado da Saxónia, o mesmo onde se situa a cidade que foi palco dos violentos confrontos dos últimos dias.