Habitação

São portuenses - e só querem ficar na cidade

Foto Rui Duarte Silva

Foto Rui Duarte Silva

No Dia Nacional dos Centros Históricos, o Expresso partiu num périplo pela zona histórica do Porto, cada vez mais turística. Não são vozes de “Velhos do Restelo”, são testemunhos dos que sentem a cidade como ninguém

Texto André Manuel Correia

O Porto está, indubitavelmente, na moda e o turismo tornou-se num fator de desenvolvimento para a cidade. Os números mostram, com as mais de 6,8 milhões de dormidas em 2016, e os prémios dão ainda mais realce, como a distinção de Melhor Destino Europeu. A procura não pára de aumentar e o apetite imobiliário na cidade é aguçado. Um pouco por toda parte, multiplicam-se os espaços dedicados à hotelaria, enquanto o comércio local definha. Os moradores fazem das tripas coração para suportarem as rendas cada vez mais altas e muitos veem-se obrigados a deslocar-se para zonas limítrofes do município ou mesmo para concelhos vizinhos. Neste Porto onde o turismo atracou, haverá ainda lugar para todos?

Uma reportagem publicada pelo Jornal de Notícias a 14 de março dava conta da “asfixia” e da pressão imobiliária exercida sobre os habitantes mais antigos do Centro Histórico do Porto, classificado como Património Cultural da Humanidade desde 1996. O artigo acabaria por gerar polémica, com a autarquia a usar os meios de comunicação institucionais para colocar em causa, de forma veemente, a forma como o trabalho jornalístico do JN foi conduzido.

Também o presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, já apelidou publicamente, em algumas ocasiões, de “Velhos do Restelo” aqueles que levantam dúvidas ou questionam os efeitos presentes e futuros que o turismo poderá acarretar para a segunda maior cidade do país. Pois bem, nesta terça-feira em que se comemoram os Centros Históricos, o Expresso colocou os pés ao caminho, numa reportagem itinerante por vários pontos da Invicta.

Encontramos uma população envelhecida, mas não vimos “Velhos do Restelo”. Falamos com portuenses, com um enorme orgulho e carinho pela cidade onde nasceram e sempre viveram. Não têm nada contra o turismo, apenas querem ficar. Apenas querem continuar a escrever e a ser parte da história da cidade, nestes tempos de mudança, vertigem e incerteza.

Morre uma livraria, cresce um hotel

Na Rua da Fábrica, n.º42, encontramos a Livraria Sousa & Almeida, fundada em 1956 por Joaquim Oliveira de Almeida e Armando Santos Sousa. De portas abertas há 61 anos, o último capítulo escreve-se em agosto, na sequência do prédio onde o estabelecimento alfarrabista fica localizado ter sido adquirido pelos proprietários do Hotel Infante Sagres. Até essa data, Joaquim de Almeida, com 89 anos, explica que tem mais de 20 mil livros para vender, enquanto lança um olhar lânguido pelas estantes onde encontramos livros de arqueologia, arquitetura, arte portuguesa, literatura nacional, brasileira, africana e bastantes obras em galego.

Por este emblemático espaço passaram nomes ilustres como os arquitetos Alfredo Viana de Lima, Álvaro Siza Vieira e Eduardo Souto de Moura; os irmãos José Régio e Júlio; ou ainda o realizador Manoel de Oliveira. Enquanto folheia um antiquíssimo número da revista de moda “Eva”, Joaquim abre o livro do que aconteceu à Sousa & Almeida: “Eles querem o espaço, têm dinheiro, têm tudo… Não há nenhum travão a isso. Podia contestar, ir para tribunal, mas já não tenho idade para andar nessas coisas. Não compensa”, admite o alfarrabista, num tom resignado mas sempre afável.

Sobre o futuro, nada sabe. “Depois logo se verá”, diz, de forma cabisbaixa. “Desapareceu tudo o que havia de interessante. As lojas foram desaparecendo para dar lugar a cafés, hotéis e bares. Não sei o que é que isso vai trazer para o futuro”, alerta o ainda proprietário de 89 anos, que juntamente com a esposa vai gerindo com o amor de sempre este emblemático espaço livreiro.

Enquanto noutro ponto da cidade os turistas fazem fila para entrar na Livraria Lello, para Joaquim os efeitos da massificação do turismo não lhe trouxeram benefícios. “É um turismo que não olha muito a livros, na maioria dos casos. São muito poucos turistas que vêm e se interessam. Visitam a [livraria] Lello, mas não é pelos livros. Aqui, às vezes, também vêm tirar fotografias”, assegura Joaquim Almeida.

Mesmo à entrada da livraria, encontramos Luís Manuel Cardoso, um antigo bancário com 80 anos. Não é do Porto. Reside em Vila do Conde, mas na Invicta que trabalhou durante 50 anos. Tem uma biblioteca pessoal com milhares de obras e desloca-se regularmente à Sousa & Almeida para encontrar raridades que já não encontra noutros locais. “É lamentável ver esta casa e tantas outras com tradição a desaparecer”, afirma, com alguma melancolia.

De outros tempos, recorda uma Rua do Almada com um “comércio fluorescente”, mas que atualmente já não lhe diz nada. Tal como a Rua das Flores, onde não encontra nada de interessante, mas reconhecer estar “airosa para os turistas tirarem fotografias”. Sobre a aposta massificada no turismo, mostra-se relutante e relembra que “os hotéis poderão ter, no futuro, o mesmo desastre, que tiveram os cafés há alguns anos”.

Na Avenida dos Aliados sucedem-se os autocarros turísticos. Azuis, vermelhos e amarelos, todos eles cheios em tardes de sol. Junto à Torre dos Clérigos os “tuk-tuk” aguardam pelos turistas. Na Ribeira, os visitantes fazem fila para se deliciarem nos cruzeiros das seis pontes, enquanto nos dias mais quentes adolescentes de 13, 14 ou 15 anos mergulham para o rio a troca das gorjetas generosas dos turistas.

À entrada da Rua das Flores encontramos Patrícia Pereira, de 30 anos e música de rua há 10. Com a sua concertina toca temas originais, com uma sonoridade que nos remete para um ambiente parisiense. Duranta uma pausa para um cigarro, explica ao Expresso que o negócio “vai dando” e que as crianças são quem mais param para a ouvir, assim como os jovens casais. A melodia prossegue e a nossa reportagem também.

“Não fica cá ninguém para contar a história”

A próxima paragem é na Drogaria Louzada, fundada em 1926 e uma das únicas ainda em funcionamento. O proprietário faleceu não há muito tempo e a pedido dos filhos neste momento é o amigo da família Fernando Teixeira, de 58 anos, quem vai segurando as pontas. Nas prateleiras podemos encontrar produtos de outras épocas, como os sabonetes “Ach Brito” ou pastas dentífricas “Couto”. “Não sei o que vai acontecer à Drogaria Louzada. Eu fazia muito gosto que permanecesse”, confessa Fernando, residente na freguesia da Sé.

Embora encontre aspetos positivos no turismo, não deixa de tecer várias críticas. “A cidade está cosmopolita e acho ótimo, mas deixa de ter a sua graça quando ficar igual às outras”, começa por dizer Fernando Teixeira. “Se a ideia é retirar os portuenses de gema daqui, qualquer dia o Porto deixa de ser dos portuenses e não fica cá ninguém para contar a história”, dando como exemplo o caso do próprio pai que foi despejado com 86 anos. “Hoje põe-se na rua uma pessoa com 60, 70 ou 80 anos. Não se olha a meios. É o que está a acontecer. Conheço muitos casos. Passem pela Sé e vão ver que aquilo que estou a dizer é verdade”, conclui, enquanto nos aponta o trajeto.

Seguimos o seu conselho e subimos as ruas íngremes e estreitas. Pelo caminho, encontramos Rosa Correia, de 65 anos, residente no n.º61 da Rua da Pena Ventosa. “Gosto da agitação e olho com muita alegria para a cidade”, afirma, com um sorriso nos lábios, mas sem esquecer que “muita gente teve de abandonar a zona e ir morar para os bairros”.

Até hoje nunca teve problemas com a senhoria. “É muito minha amiga”, assevera, mas não esconde o receio de que, no futuro, “a Sé vai ser para os ricos”.

Mais abaixo, na Rua da Banharia, entramos na discreta Adega Gandarela, gerida solitariamente por Maria de Lurdes Oliveira, de 85 anos. Mudou-se para o Porto com apenas 13, proveniente de Celorico de Basto. Por ali casou, constituiu família, teve três filhas e o Porto está-lhe no coração. Assim como a adega.

Já a tentaram comprar meia dúzia de vezes, garante, enquanto nos mostra os cartões de contacto que os interessados lhe deixaram. “Às vezes ainda passam por cá”, afirma. “O turismo é bom para os restaurantes e para os hotéis. No verão ainda se vai fazendo algum negócio, mas nesta altura é mais complicado”, admite Maria de Lurdes, para quem estar ali, além de trabalho, é uma forma de se distrair.

Com os turistas comunica através de gesto, o suficiente para lhes compreender o fascínio pela cidade. “Toda a gente gosta do Porto, mas as pessoas gostam é das coisas antigas”, assegura a senhora de 85 anos. “Agora tentam apanhar tudo para fazer hostéis”, desabafa, com alguma consternação.

As “Cartas ao Rui” de quem só quer voltar para casa

Recentemente, foi criada no ‘Facebook’ uma página intitulada “Cartas ao Rui”, onde várias pessoas expõem as suas situações ou de pessoas próximas, escrevendo breves textos em forma de uma missiva endereçada ao presidente da Câmara Municipal do Porto. Os utilizadores da página dão conta do assédio imobiliário: telefonemas, cartas, toques de campainha, esperas à porta de casa, tudo acontecimentos que, segundo contam, terminam com uma comunicação registada do senhorio a dizer “fim de contrato”.

Um dos vários textos “endereçados” ao autarca é assinado por Maria Teresa Campos e datado de 8 de fevereiro, no qual começa por dizer: “Rui, sempre vivi no Porto, no entanto vi-me obrigada a abandonar esta cidade que tanto gosto”. Entre algumas palavras mais inflamadas, Maria termina escrevendo: “não faças do Porto uma cidade ‘trés jolie’, só para inglês ver, sem alma, sem identidade. Quero voltar para casa…”