TRABALHO

“A prisão na relação [laboral] não faz sentido nos dias de hoje”

POLÉMICO Nuno Carvalho, diretor-geral da Padaria Portuguesa

POLÉMICO Nuno Carvalho, diretor-geral da Padaria Portuguesa

Nuno Carvalho, o diretor-geral da Padaria Portuguesa, falou ao Expresso sobre a polémica criada com as suas declarações a favor de uma maior flexibilidade no mercado laboral. E desmente que tal caminho fosse conduzir a maior precariedade. “Os trabalhadores também sairiam beneficiados”

TEXTO NELSON MARQUES FOTO TIAGO MIRANDA

A pergunta da repórter da SIC Teresa Camarão era sobre o chumbo da redução da Taxa Social Única (TSU) para os patrões. Mas o que Nuno Carvalho, um dos sócios e diretor-geral da Padaria Portuguesa, queria era um debate mais abrangente sobre “uma legislação laboral que promova a produtividade e que permita aos colaboradores ganharem mais dinheiro à medida que os negócios evoluam”. Como? Tornando mais flexíveis as contratações, os despedimento e os horários de trabalho, por exemplo. “[A jornada laboral] não deve estar fechada a 40 horas semanais, só porque a lei o diz. Tem que se pagar horas extra com volumes consideráveis de acréscimo de custos de pessoal que penalizam as organizações”, justificou.

O debate não é novo — reacendeu-se na semana passada, quando foi conhecido um relatório da OCDE, encomendado ainda durante o governo de Passos Coelho, que propõe uma maior flexibilização laboral — mas incendiou as redes sociais, sobretudo depois de um texto de Daniel Oliveira, cronista do Expresso. “Não me espanta que quem baseie o seu negócio nos salários baixos considere que a grande prioridade dos portugueses não é o aumento do salário mínimo (que só interessa aos políticos, claro), mas a liberalização dos despedimentos, o fim dos limites legais ao horário de trabalho e uma redução considerável do pagamento de horas extra, não penalizando as empresas que contratam menos trabalhadores do que aqueles que necessitam para funcionar”, escreveu na sua página no Facebook.

O responsável da empresa que tem 50 lojas espalhadas pelo país e emprega cerca de mil pessoas explicou ao Expresso porque entende que um mercado de trabalho mais flexível pode beneficiar empresas e trabalhadores.

Alguma vez imaginou, quando fez as declarações à SIC na manhã desta quarta-feira, que elas viessem a provocar esta polémica?

A minha posição não foi inconsequente, mas sabia que podia causar discórdia. Numa realidade onde a opinião é tipicamente conforme, haver uma opinião que não é conforme gera sempre alguma celeuma. Não esperava é que fosse a este nível, embora não saiba verdadeiramente o alcance porque às seis da tarde desliguei os dados do telemóvel e fui descansar a seguir a um dia de trabalho. Olhe, li a revista do Expresso que ainda não tinha lido.

Receberam muitas queixas de pessoas que não gostaram do que ouviram?

Tivemos meia dúzia de comentários na nossa página do Facebook. Noutros sites, como lhe disse, não estive a avaliar. Gerimos todos isto com muita tranquilidade e, felizmente, com alguma diversão. Sabemos o trabalho que fazemos cá dentro e a dedicação que temos às nossas equipas. Não tinha noção que fosse ter este impacto nas redes sociais e tudo advém de uma crónica que acaba por fazer uma leitura incorreta daquilo que eu disse e que ampliou um bocadinho a coisa.

Está a referir-se ao texto que o Daniel Oliveira, cronista do Expresso, escreveu no Facebook.

Estou a referir-me ao texto do Daniel Oliveira.

Quando diz que há uma leitura que foi incorreta...

Não tenho necessidade de fazer contraditório.

Mas teria feito alguma coisa diferente?

Teria dito exatamente o mesmo. A Padaria Portuguesa só tem seis anos, mas a minha vida profissional é relativamente longa. Trabalhei 10 anos no grupo Jerónimo Martins, trabalhei outros tantos na TV Cabo Lisboa enquanto estudava, para pagar os estudos, e em ambas as organizações em que trabalhei como assalariado tinha a mesma visão sobre a legislação laboral. Naturalmente, entrando em contacto com a realidade numa lógica de empreendedor, assumindo o risco e implementando com mangas arregaçadas este projeto da Padaria Portuguesa, diariamente eu e a minha equipa de gestão nos deparamos com grandes frustrações de decisões que impactam num dos grandes custos da nossa organização, que são os custos com pessoal. Há um desajuste entre as expectativas dos nossos próprios trabalhadores e o que a lei permite em diversas matérias.

A que se refere?

Vou dar-lhe alguns exemplos. Temos muitas pessoas que têm contratos a 40 horas connosco e contratos a 40 horas com outras entidades. E temos muitas outras com contratos de 'part-time' noutras entidades. E as pessoas, se pudéssemos tê-las num registo de 60 horas, preferiam trabalhar só connosco. Há uma necessidade de levar mais dinheiro para casa e a lei não permite que isso possa acontecer só numa entidade, a não ser por via de horas extra, que são custos absolutamente dramáticos para uma organização. E são de controlo dificílimo, porque há toda uma cultura de estender horas e reduzir a produtividade do trabalho a que assisti na minha experiência profissional anterior. Outro exemplo é o tipo de contratação. Em teoria, a lei diz-nos que devemos iniciar o contrato com um período experimental, mas não é viável no mercado de trabalho de hoje não haver oportunidade de, com maior longevidade, o empregador e o funcionário se conhecerem. Nesta área do retalho alimentar há uma catrefada de rescisões no período experimental em contratos de seis meses, nos primeiros 30 dias, porque as organizações não querem correr o risco de levar com o colaborador mais cinco meses.

FOTO D.R.

FOTO D.R.

Qual seria a alternativa?

O meu entendimento é simples, isto é um bocadinho como uma relação: quando um casal se gosta durante um tempo e depois um dos elementos deixa de gostar do outro, é preciso ser kamikaze para continuar uma relação com alguém que não gosta de nós. Isto é válido do lado do empregador, mas também é válido para o lado do colaborador. A prisão na relação não faz sentido nos dias de hoje. Sinto que há aqui duas visões sobre tudo isto que estamos a discutir: continua a haver uma visão que é muito esquerdista, que os empregadores são uns malandros, uns exploradores, uns chauvinistas, e os trabalhadores são uns coitadinhos e só têm direitos. Depois, há outra realidade, que felizmente é aquilo que vivemos na Padaria Portuguesa: é uma organização que investe nos trabalhadores, que dá crescimentos profissionais brutais e que tem colaboradores que estão dispostos a assumir riscos com a organização, ter um desempenho acima da média e crescer profissionalmente. Temos engenheiros e arquitetos a trabalhar connosco que entraram como operadores de balcão porque nas suas áreas profissionais não tinham saídas. E neste momento não ganham o salário mínimo, ganham três ou quatro vezes isso. Cresceram profissionalmente connosco com base num plano de formação. As pessoas não estão ligadas a direitos, estão ligadas ao desafio. E também há casos de colaboradores que trabalharam connosco dois anos e que depois decidiram ir trabalhar em organizações em Espanha, e amigos como dantes. Esta forma de funcionar do mercado, que cobre gerações que têm ciclos profissionais e motivacionais cada vez mais curtos, que não querem emprego para toda a vida, é desse lado que trabalhamos na Padaria Portuguesa.

A OCDE sugere a Portugal olhar para o exemplo da Alemanha, onde o pagamento de indemnizações em caso de despedimento não é obrigatório, embora a maioria dos empregadores o faça. Esse seria um caminho possível?

Não, discordo disso, sobretudo numa fase inicial. Não se pode passar do 8 para o 80. Há um modelo de funcionamento do mercado de trabalho que já está muito incutido nas pessoas e seria desastroso quebrá-lo por essa via. As pessoas a este nível salarial não têm poupança, é chapa ganha, chapa gasta. São pessoas tipicamente mal preparadas para gerir as suas finanças pessoais, gastam uma grande parte do rendimento com bens não essenciais, como tecnologia, os telemóveis, os 'tablets', que acabam por desfalcar as finanças familiares. Por isso, não é uma solução para o mercado de trabalho português, seria desarmar as pessoas. Acho que o princípio de um mês de salário por cada ano de trabalho perfeitamente razoável.

Algumas destas alterações podem esbarrar na própria Constituição, que garante aos trabalhadores “segurança no emprego” e proíbe o despedimento sem justa causa.

Isso tem de falar com um constitucionalista, não é com o Nuno Carvalho que é padeiro.

Faço-lhe então outra pergunta: não há o perigo de a flexibilização conduzir a maior precariedade?

Precariedade é o que vivemos hoje em dia. Entrevistamos semanalmente centenas de pessoas para o nosso projeto de expansão e centenas de pessoas vivem esta realidade: não têm contratos de trabalho nos atuais empregadores, trabalham a recibos verdes, têm contratos de 'part-time' e recebem a 'full-time' por fora, recebem o ordenado mínimo e depois recebem 200 e 300 euros por fora. Isto acontece neste mercado como em outros tantos. Aqui na restauração, na pastelaria e nos restaurantes tradicionais, é o dia a dia, basta circular por Lisboa e falar com os empregados de balcão. Mas na sua indústria também. Conheço dezenas de jornalistas que trabalham em condições absolutamente precárias. Só não vê quem não quer ver. Eu não vou disfarçar aquilo que se passa. Estamos a concorrer com operadores que funcionam à base da evasão fiscal e na Padaria Portuguesa não falhamos um cêntimo nas nossas obrigações fiscais. Ou seja, precariedade é aquilo que se passa num modelo absolutamente inflexível.

Num modelo com maior flexibilidade, os trabalhadores da Padaria Portuguesa podem ter a expectativa de levar mais dinheiro para casa?

Eles já levam e se o modelo for mais flexível mais levarão, porque vamos ser mais produtivos. Dou-lhe um exemplo: temos muita gente muito interessada em poder ter mais rendimento através da Padaria Portuguesa, trabalham 40 horas semanais e estão disponíveis para trabalhar mais, porque na realidade já têm outros trabalhos, precisam de dinheiro para levar para casa. Se pudéssemos chegar a um acordo com os colaboradores interessados no assunto em ter contratos de 60 horas, eu não vejo porque não.

Segundo um estudo da Organização Internacional do Trabalho, 50 horas semanais é o limite de um trabalho saudável. E é pouco provável que a partir daí a produtividade seja maior.

Isso devem ser com certeza abordagens empíricas como a minha, mas no meu empirismo acho que as pessoas têm capacidade para trabalhar mais de 40 horas semanais e serem devidamente remuneradas por isso. Contudo, isso é para quem está interessado em fazê-lo. A realidade da minha organização é que temos centenas de pessoas que já fazem isto diariamente.

E não irá fazer com que a empresa precise de menos pessoas?

Estou convencido que não, porque vai dar-lhe maior capacidade competitiva. Vai poder investir e criar mais postos de trabalho.

Que outras medidas defende?

Na gestão dos horários, os tempos de descanso são claramente feitos para outras indústrias. Há muitas regras que nos impedem de fazer os horários de acordo com o ciclo do negócio e os colaboradores estão até mais interessados em cumprir os horários do ciclo do negócio do que o horário definido por lei no descanso semanal. Há também convenções coletivas que acabam por acrescentar à legislação laboral de base algumas particularidades para a fazer funcionar melhor para determinadas indústrias. Mas, por exemplo, nós temos de definir funções, com base no contrato coletivo de trabalho, que não são as funções que temos na organização. Temos diferentes valências, temos operadores de balcão, chefes de turno, gerentes, subgerentes, padeiros, pasteleiros, pessoal de limpeza, gestores, é uma realidade bastante transversal. E temos de encaixar nas funções do contrato coletivo de trabalho, com base numa tabela salarial, realidades que não são as que existem na prática. Tem sentido isto? Tem sentido uma organização ter de se fixar em regras que foram definidas há dezenas de anos para indústrias que não são a realidade de hoje, que não vão de encontro ao perfil de determinadas organizações? Isto é um travão para o desenvolvimento de uma organização. Tenho operadores interessados em evoluir, mas a categoria profissional deles não lhes permite fazer outras funções. E num regime de trabalho cada vez mais orientado para o consumidor quer-se flexibilidade. Não pode haver uma função estanque dentro de uma loja da Padaria Portuguesa. Não há só quem atenda ao público, só quem levante louça, por uma questão de justiça e uma questão de eficiência. Tudo isto cria um ónus muito pesado para a entidade empregadora e, infelizmente, não beneficia os colaboradores.

É nisto que as pessoas estão interessadas: trabalho mais, trabalho melhor, levo mais dinheiro para casa. Mensalmente, distribuímos em prémios 1,5% das vendas

Defende, portanto, que a flexibilidade laboral vai de encontro aos interesses dos próprios colaboradores.

Claramente. Há ainda muita gente que quer ter estabilidade e vê numa empresa a solução para a vida toda, para dezenas de anos. Depois, há uma outra população, que já é muito significativa, e que representa uma grande fatia dos nossos trabalhadores, que tem uma visão completamente contrária. Nesta área de negócio, numa fase inicial, as pessoas chegam tipicamente para um trabalho temporário, mas a verdade é que já estamos a construir carreiras, com níveis de promoção enormes. Só no ano passado promovemos quase 90 pessoas. E, como lhe disse, temos aqui arquitetos e engenheiros que estão a fazer carreira connosco. E esta malta não quer ter um emprego para a vida. Estão a ter uma experiência proveitosa na Padaria Portuguesa, mas se calhar daqui a uns anos querem ter outra. Não estão preocupados com a salvaguarda da sua profissão. Porquê? Porque estão a trabalhar numa organização que promove a meritocracia. Temos uma política de remuneração variável que permite a toda a gente ter um prémio variável. Temos, por exemplo, gerentes que recebem mais 60% do que o seu rendimento mensal através deste prémio. A média mensal em operadores de loja é de 40 euros de prémios - é um terço da população que é beneficiada. Nos gerentes e subgerentes, a média é de 200 euros por mês. É nisto que as pessoas estão interessadas: trabalho mais, trabalho melhor, levo mais dinheiro para casa. Mensalmente, distribuímos em prémios 1,5% das vendas.

Faz sentido o aumento do salário mínimo em Portugal?

Faz todo o sentido. Disse na peça da SIC e volto a repetir: nenhum patrão fica feliz por pagar o salário mínimo. Agora, há muita gente que não percebe, o Daniel Oliveira, por exemplo, não percebe nada destes assuntos, é que a realidade para o colaborador é diferente da realidade para uma organização. Este salário mínimo de 557 euros tem um peso de 877 euros por mês para as empresas, são 300 euros que o Estado leva. A definição ideal de um salário num mercado livre seria a relação entre a oferta e a procura, mas está condicionada pela fiscalidade, que em Portugal é dramática. As pessoas querem pagar mais, mas não podem pagar mais. Como os custos fixos de uma organização têm de ser geridos com muita responsabilidade, na Padaria Portuguesa pagamos a sério na componente variável. E acredito piamente que a flexibilidade laboral nos vai permitir agilizar as organizações a ponto de pagar mais ao colaborador.

Qual vai ser o impacto do aumento do salário mínimo nas contas deste ano?

Cerca de 150 mil euros.

Quanto é que faturaram em 2016?

26,3 milhões. Este ano esperamos chegar aos 38 milhões.

E qual é o salário médio dos trabalhadores da empresa?

695 euros, ao qual acresce o subsídio de almoço, que tem valor integral para os colaboradores, porque oferecemos as refeições.

Disse que 25% da massa salarial da Padaria Portuguesa refere-se a trabalhadores que estão "em regime de transição" com o salário mínimo. O que quis dizer com essa expressão?

[risos] É engraçada a interpretação sobretudo do Daniel Oliveira, que tem esta audiência de pessoas com ira nas redes sociais. O que quis dizer é que nesta organização temos uma política de mérito e estamos a fazer uma avaliação de desempenho a todos esses trabalhadores para tomar decisões: se passam para o escalão acima, se fazemos um determinado aumento, o que é que acontece na organização. Perante o aumento do salário mínimo na lei, temos de rever os nossos escalões e temos de fazer uma avaliação de desempenho para tomar decisões. Estas pessoas até ao final de fevereiro vão ter uma decisão.