Daniel Oliveira

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

A esquerda não moraliza o lucro

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Sempre que há uma polémica sobre o exemplo e a coerência dos políticos fico numa situação difícil: a de estar numa minúscula minoria impopular. Confesso que até gosto. A mim, interessam-me as políticas públicas. E dos políticos, para além do cumprimento da lei e da honestidade, interessa-me o que fazem com o seu cargo em nome do bem comum. Essa é a coerência que me interessa neles: governarem como prometeram. Por isso, é preciso muito para eu embarcar no moralismo reinante sobre as suas escolhas privadas. Geralmente tão mais histérico quanto maiores são os telhados de vidro de quem atira as pedras. Por isso defendi Passos Coelho quando foi o caso da segurança social ou Fernando Medina quando foi o caso da compra da casa. O moralismo no lugar da política mata a política. Isto é uma lição que nem sempre soube mas fui aprendendo.

A história de Ricardo Robles é aparentemente difícil para ele (e politicamente vai ser). O vereador que se tem batido contra os efeitos do processo de gentrificação da cidade provocado pela forte pressão especulativa foi notícia por ter realizado, há um ano, um negócio em que comprou um prédio em Alfama, negociou a saída dos moradores (em troca de compensações), reabilitou e pôs à venda (não chegou a vender) por um valor muitíssimo superior à compra. Estamos perante um caso de investimento especulativo, sem mácula legal. Mas indiscutivelmente especulativo. Não se conhece qualquer pressão indevida sobre os inquilinos, aproveitamento do cargo (a compra e remodelação é anterior às eleições) nem comportamento fora do que se considera aceitável para qualquer cidadão. O debate é sobre a coerência política.

A esquerda não se dedica à moralização dos interesses individuais dos investidores, mas à intervenção do Estado para regular os seus efeitos. A esquerda não procura santos, defende políticas públicas. A propósito do caso de Ricardo Robles, do moralismo que se mobilizou contra ele e da lição que o BE vai tirar disto.

A esquerda consequente concentra-se no papel que o Estado deve desempenhar na cidade ou no país. A esquerda defende políticas públicas que, por intervenção no mercado ou pela lei, limitem os efeitos perversos do funcionamento do mercado. Ao contrário da direita liberal, a esquerda não acredita que é o comportamento individual dos agentes económicos que regula a economia. Essa é exatamente a maior divergência que tem com o neoliberalismo dominante: a de que o mercado se equilibra naturalmente. Enquanto o neoliberalismo acredita que o interesse comum é garantido pela soma dos interesses privados, a esquerda acredita que a mera soma dos interesses privados prejudica o interesse comum. Uma boa imagem é a das regras de trânsito: se todos fizermos o que é melhor para nós o trânsito torna-se caótico e todos acabamos prejudicados. A não ser, claro, quem tenha um helicóptero. É por isso que a esquerda defende a intervenção do Estado no mercado. Isto que dizer que uma pessoa de esquerda coerente não acha que uma sociedade decente pode depender da vontade individual de cada agente económico. E não acredita no mecenato e na caridade como formas de garantir a justiça social.

Uma pessoa de esquerda não espera que os agentes do mercado pensem no bem comum. Porque os agentes do mercado não pensam no lucro por serem eticamente desprezíveis. Pensam no lucro porque é essa a sua natureza e isso não tem mal nenhum. Cabe ao Estado pensar pelo bem comum e ter instrumentos para reduzir o impacto negativo da consumação do interesse individual. Esse interesse individual está presente quando compramos e vendemos casas aos preços do mercado ou quando investimos o nosso dinheiro numa aplicação financeira. O papel do Estado é aquele que foi resumido numa exigência feita num texto escrito há muitos anos por Paulo Varela Gomes, na revista “Manifesto”, sobre o estacionamento: “Tirem os nossos carros de cima dos nossos passeios”.

Antes de regressar a Ricardo Robles, uso-me como exemplo. Não vendi a casa em que vivi antes. Como está numa zona em altíssima valorização, preferi esperar. Ou seja, pensei no meu interesse. Entretanto, arrendei a casa ao preço de mercado. Não ao “preço justo”, mas ao preço que estavam dispostos a dar-me. Isso não me impede de dizer que as rendas praticadas em Lisboa terão como efeito a expulsão dos pobres e até da classe média. Qual deveria ser o meu comportamento perante esta convicção? Arrendar a casa ao preço mais baixo possível? Na realidade, se não precisar realmente do dinheiro, até cedê-la a um sem-abrigo ou a refugiados gratuitamente? Ninguém sério espera que o faça. Porque isso não mudaria nada no mercado a não ser prejudicar-me e ajudar a única família a quem saísse a sorte grande. O que defendo é que o Estado deve pôr milhares de casas no mercado a preços controlados. E isso terá um efeito deflacionário no mercado que, sem me exigir qualquer tipo de altruísmo individual, me irá prejudicar. A mim e a todos em igual circunstância e sem discriminação por convicção. Isto é política. E é isto, e não qualquer tipo de ascetismo individual, que espero que seja feito por um político de esquerda.

Que eu saiba, o Bloco de Esquerda não defende, para os dias de hoje, a limitação à liberdade de propriedade nem tetos na venda de imóveis privados. Não defende, pelo menos na autarquia, limites à liberdade económica. Defende, do que sei, que o Estado ponha casas no mercado de arrendamento que tenham um efeito moderador no próprio mercado. Isto não é contraditório com o normal ato de comprar um bem ao mais baixo preço possível e vendê-lo ao mais alto preço possível. A esquerda consequente não se dedica à moralidade individual do investidor. Disso trata o cristianismo. A esquerda consequente dedica-se às políticas públicas. E a pergunta a fazer a Ricardo Robles é se cumpriu, no exercício do seu cargo, as promessas que fez nesta área. Como eleitor é o que me interessa.

Claro que o Bloco tem aqui um problema. Apesar das nas suas propostas não encontrar nada que se afaste de políticas públicas que contribuam para regular o mercado, a sua retórica aproxima-se muitas vezes de um discurso moralista sobre os agentes económicos. Isto é evidente quando, a propósito dos despejos, desfraldou um pano no parlamento em que se lia: “no vocabulário do lucro não existe a palavra compaixão”. Pois é natural que não exista, até porque o “lucro” não é uma entidade com vontade própria e ainda menos capaz de integrar conceitos morais. É por isso mesmo que a esquerda não pretende oferecer aos investidores um catecismo, pretende dar ao Estado a capacidade de corrigir os efeitos dos seus atos necessariamente egoístas. O moralismo sobre a economia é, deve ser, totalmente estranho à esquerda.

Se não o fosse, a esquerda estaria condenada a ser uma seita que não vive neste mundo, composta por pessoas extraordinárias. Na realidade, quem tenta passar essa ideia sobre a esquerda está a dar duas armas infalíveis aos seus adversários: o de facilmente denunciarem contradições em quem apenas vive com as mesmas regras que os seus concidadãos (santos há poucos e o seu lugar não é na política) e ter os políticos de esquerda a serem muito mais escrutinados do que os de direita (quanto menos justiça pedes menos tens de praticar). Mesmo vendo neste episódio uma dor de crescimento do Bloco de Esquerda (que talvez passe a substituir o moralismo pelo discurso político), não participo no coro indignado (sincero ou oportunista) contra Ricardo Robels. Assim como não participei no que se virou contra o deputado comunista António Filipe por ter sido visto numa sala de espera de um hospital privado e que um dia destes se virará contra um qualquer político que defenda os transportes púbicos e ande de automóvel. Esta não é a política que me interessa, seja contra Passos, Medina, Robles ou António Filipe. Até porque não exijo aos políticos mais coerência do que exijo a mim.