Chamem-me o que quiserem
Henrique Monteiro
Uma grande verdade escondida numa enorme mentira
O líder do PSD foi a Pedrógão Grande dizer uma verdade evidente – que o Estado falhou redondamente no combate àquele fogo trágico, a maior tragédia (se excetuarmos acidente aéreo com o voo TAP 425, na Madeira, em 1977) desde as cheias de Lisboa em 1967. Há 50 anos, ou há 40 se considerarem a queda do avião com 156 passageiros (a maioria belgas) a bordo. Inexplicavelmente, o líder do PSD disse uma mentira tão desastrada e irresponsável que se tornou no primeiro carrasco da verdade que tinha ido dizer.
O que pode justificar o comportamento de Passos não faço ideia. Se calhar, quando o referem não como líder da Oposição, mas primeiro-ministro no exílio talvez estejam a caracterizar o que ele sente. Seja como for, já deveria ter percebido, com a sua experiência, que os políticos podem mentir à vontade desde que não seja com coisas demasiado sérias, como a que ocorreu na zona do Pinhal interior. Mas voltemos à verdade, que antes de Passos a dizer já vários tinham afirmado, porque também é bom que não fique esquecida apenas porque o líder do PSD tem ele próprio tendências politicamente suicidas.
Quem ler a fita do tempo da caixa negra que regista as comunicações entre os diversos protagonistas na cadeia de combate aos fogos e da Proteção Civil, que o ‘Público’ divulga na sua edição de hoje, fica esclarecido. O Estado falhou basicamente porque com comunicações assim e com cadeias de comando tão mal definidas todos falhariam. O célebre SIRESP (e hão de me explicar a mim, que tenho fama e certo proveito de liberal, por que raio de ideia a rede de segurança, emergência e proteção do Estado é uma sociedade anónima, uma PPP) esteve em silêncio tanto tempo como o que funcionou. Antenas e carros para emergências demoram quase meio-dia a chegar de Lisboa a Pedrógão, comunicações sobre pessoas que estavam isoladas em casa (um senhor de 75 anos já com dificuldades respiratórias) não chegam ao Posto Operacional de Comando, enfim uma balbúrdia.
No meio dessa balbúrdia não se entende como desviam (se é que desviaram) para uma estrada estreita uma série de pessoas lá encontraria a morte, nem se percebe como nunca se deu ordem para encerrar a estrada, pelo menos não antes de 40 pessoas perderem ali a vida.
O terreno era aquele, o mato, o pinheiro, o eucalipto e tudo o mais, como as estradas, as povoações, as casas já lá estavam
O Estado não funcionou, porque o nosso Estado não protege como deve os seus cidadãos. Dizer que a culpa é deste Governo é só parte ínfima da verdade – é também de muitos que o antecederam; dizer que é o do eucalipto é para fazer política estranha, mais de 50 por cento do que ardeu era mato e o restante foi sobretudo pinheiro; dizer que é dos interesses económicos, do raio, do fogo posto, do que for, nada interessa a esta questão. O certo é que o terreno era aquele, o mato, o pinheiro, o eucalipto e tudo o mais, como as estradas, as povoações, as casas já lá estavam.
Em face de um incêndio – por grave que seja – não há memória de tantos mortos civis. Em 2013 morreram 19 bombeiros no Arizona, EUA; no mais destrutivo incêndio do Canadá em Fort McMurray, 2016, não morreu ninguém, apesar de terem ardido mais de 2400 habitações. No pior incêndio da história do Chile, já este ano, em janeiro, morreram 11 pessoas. Em Espanha, em 2005 morreram 11 bombeiros num enorme incêndio em Guadalajara; na Rússia, em 2015, faleceram 26 pessoas, mas milhares de casas ficaram destruídas. Em Portugal, em 2003 morreram 21, das quais 17 civis, o que foi considerado uma trágica anormalidade (um investigador de Coimbra, Domingos Viegas, investigou as mortes uma por uma e escreveu um livro em 2004 "Cercados pelo Fogo" que poucos responsáveis devem ter lido). Precisamos de recuar a 1949 para verificar em França um incêndio mais mortífero do que o de Pedrógão – 82 vidas perdidas nas Landes (região de Bordéus).
Por isso, temos de continuar a saber o que se passou. Sem as politiquices e incompreensíveis irresponsabilidades de Passos, mas também sem o constante sacudir de água dos capotes das diversas autoridades.
Não podemos ter um Estado onde a única máquina oleosamente eficaz é a que nos cobra os impostos.