Daniel Oliveira

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

Tolerância de ponto: o copo meio cheio da demagogia

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O governo decidiu dar tolerância de ponto à Função Pública por causa da visita do Papa Francisco. Eu, que sou favorável a menos tempo de trabalho – o que inclui feriados e horários mais curtos – como uma forma de distribuir melhor o que é escasso por todos e garantir que a riqueza é devolvida em qualidade de vida e tempo livre para todos, não sou especialmente favorável a tolerâncias de ponto. Porque há uma diferença entre horários, férias, folgas e feriados e a tolerância de ponto: os primeiros são um direito, previsível e usada pelos trabalhadores como entenderem, a segunda é um favor, discricionário e ao sabor da vontade do empregador. E aprendi na vida que quem exige direitos não pede favores. Depois, não sou especialmente favorável a folgas exclusivas para o sector público.

Mas o debate que se desenvolveu em torno desta tolerância de ponto foi em defesa da laicidade do Estado. A visita de um líder religioso, podendo exigir, pela sua relevância, uma política de Estado nunca deve depreender que todos os cidadãos professam a mesma religião. Caso contrário, outros cidadãos com outras religiões terão todo o direito de exigir o mesmo quando estiver em causa um momento de igual relevância para o seu credo. A laicidade do Estado não corresponde a qualquer tipo de cegueira ou nojo perante o fenómeno religioso. Oponho-me a esse tipo de laicidade radical. Mas não permite qualquer tipo de discriminação ou favorecimento de qualquer religião. O Estado português não tem uma religião e os portugueses têm várias (ou nenhuma).

Para além de uma violação da laicidade do Estado, a tolerância de ponto é um gesto de demagogia. Mas podemos olhar para o copo meio cheio do disparate: no passado tínhamos amnistias de multas, agora só temos tolerância de ponto. Estamos a evoluir

Neste caso, a coisa é um pouco mais estúpida. A visita do Papa, figura pela qual tenho, mesmo como ateu, uma enorme admiração, é apenas a Fátima, por apenas um dia. Não há qualquer razão prática para esta tolerância de ponto. Se toda a gente a resolvesse usar para o efeito que é dada isso faria o Santuário rebentar pelas costuras. Para além de uma violação da laicidade do Estado, é um gesto de demagogia. Mas podemos olhar para o copo meio cheio do disparate: no passado tínhamos amnistias de multas, agora temos tolerância de ponto. Estamos a evoluir. E o País tem de estar numa enorme paz para esta ser a grande polémica do momento. Às vezes até me assusto com este desencontro com o resto da crispada Europa. Mas prefiro assim.