HOMENAGEM

Um dia não são dias e hoje é o dia da Memória

MARCAS Na imagem, o sobrevivente de Auschwitz Leon Greenman, prisioneiro número 98288, mostra a sua tatuagem no Museu Judaico de Londres, em 2004 FOTO IAN WALDIE/GETTY IMAGES

MARCAS Na imagem, o sobrevivente de Auschwitz Leon Greenman, prisioneiro número 98288, mostra a sua tatuagem no Museu Judaico de Londres, em 2004 FOTO IAN WALDIE/GETTY IMAGES

Em 2005, a Assembleia-Geral das Nações Unidas estabeleceu o 27 de janeiro como o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. E hoje, o Parlamento português vai evocá-lo com uma cerimónia e uma exposição. Mas os tempos que correm exigem a pergunta: até que ponto o estudo e a memória obstinada do horror nos trouxe mais consciência? Três historiadores aventuram possíveis respostas

TEXTO LUCIANA LEIDERFARB

Quem hoje ler a Resolução 60/7 da Assembleia-Geral das Nações Unidas, que institui o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, experimentará o choque brutal entre o mundo que queremos ter e aquele que efetivamente temos. O documento, escrito há 12 anos que parecem décadas, pretende ser “um aviso para todos sobre os perigos do ódio, do fanatismo, do racismo e do preconceito”. Condena “sem reservas” as manifestações de intolerância religiosa, o assédio e a violência contra pessoas com base no credo ou origem étnica. Rejeita o negacionismo. Insta, em dois momentos, a uma mobilização que ajude a prevenir futuros atos de genocídio. Sim, fala de genocídio, essa palavra que nasceu em 1944 quando um judeu polaco, Raphael Lemkin, se apercebeu da inexistência de um termo que designasse o que estava acontecer ao seu e a outros povos às mãos do regime nazi e juntou a partícula grega 'genos' — raça ou tribo — à latina 'caedere' — que significa ‘matar’. Terminada a II Guerra Mundial, o Tribunal Internacional Militar de Nuremberga utilizou-a, assinalando a sua entrada cabal na linguagem. Dos escombros do horror também surgiria outra palavra, por sinal demasiado usada nos dias de hoje — ‘refugiado’.

Se o repúdio universal sob a alta chancela da ONU foi manifestamente insuficiente para eliminar estas palavras do léxico do nosso tempo, no presente assistimos à sua proliferação e — por via da normalização destes eventos como algo que faz parte da espuma dos dias — à sua inaceitável aceitação. Tomemos as últimas semanas, as primeiras de 2017, como exemplo: Trump, a pós-verdade, os factos alternativos, os refugiados a congelarem ao relento de uma Europa que ainda está a pensar no que fazer, a reunião de líderes da extrema-direita europeia em Koblenz, na Alemanha — com Marine Le Pen a dizer, seguindo a linha do presidente norte-americano, que este é o ano em que a Europa vai “acordar” —, Trump em feroz 'obstinatto' apoiando a legitimação da tortura e a criminalização dos imigrantes, os ataques antissemitas em Londres e nos Estados Unidos, tudo sob o nevoeiro do terrorismo, do antissemitismo e do anti-islamismo racista e de todas as formas de ódio a renascerem das cinzas 70 anos depois do fim da II Guerra Mundial.

LONDRES Memorial do Holocausto no Hyde Park FOTO JACK TAYLOR/GETTY

LONDRES Memorial do Holocausto no Hyde Park FOTO JACK TAYLOR/GETTY

A história não se repete, mas quase

“O problema do discurso do ódio é o seu efeito de contágio numa sociedade insatisfeita e em dificuldades. É a forma mais simples, mais básica de reagir”, diz Irene Flunser Pimentel, lembrando que, se a história não se repete, ela tem de servir para interpretar a realidade. E a realidade é que o passado nos ensinou pouco: “Desde a Suméria que o ser humano é muito similar, que há egoísmos que se transformam em guerras e diferenças que se transformam em intolerâncias terríveis. Estamos sempre na mesma, num eterno presente, como se o passado não contasse.” Para a historiadora, desde a Resolução 60/7 da ONU houve um “recuo total” e uma inadequação das intenções aos factos, que também abrange textos como a Declaração dos Direitos Humanos e o próprio Estatuto de Refugiado, que “não contempla quem foge da guerra”. Porém, “mesmo desatualizados, é melhor haver documentos do que não haver”. Modificá-los num momento de crise não constitui solução, pois “corre-se o risco de que muitos chefes de Estado não os ratifiquem”.

A verdade é que a existência de datas comemorativas promove a visibilidade, mas não acentua necessariamente o grau de consciência. “No mundo ocidental dá-se uma grande visibilidade ao Holocausto em museus, filmes, currículos universitários, literatura, etc. E este fenómeno poderia e talvez deveria demonstrar que o que ocorreu nos anos 30 e 40 do século passado, quando ruíram os fundamentos do racionalismo , liberalismo e humanismo, se tornaria num dique moral contra racismos e ódios de toda a espécie. Mas isto não ocorreu. Vivemos numa época de hipocrisia e mentiras, em que a memória do Holocausto parece ser importante mas está destituída de efeito político e moral. É, paradoxalmente, uma memória digna mas impotente e neutralizada”, analisa Avraham Milgram, historiador e investigador no Yad Vashem [o Centro de Memória do Holocausto], em Jerusalém.

Refugiados em igual ou maior número do que no fim da guerra estão às portas da Europa, assim como o genocídio, e continuamos a dormir sossegados. Não é de estranhar: a maioria das matanças ocorridas nos últimos 110 anos contaram com a total “indiferença em relação às vítimas, por parte dos que viviam próximos dos crimes, dos vizinhos ou da comunidade das nações”. Assim foi, enumera Milgram, com os hereros na Namíbia em inícios do século XX, com o genocídio arménio em 1915 — até hoje não reconhecido pela Turquia —, com o perpetrado pelos japoneses em Nanjing, em 1937-38. “Nos últimos 20 anos, a indiferença é ainda maior pois tudo é filmado e visto na TV no mundo inteiro. Somos todos testemunhas, ninguém pode afirmar que não sabe, que não vê ou que não ouve”, comenta, parafraseando a crueza do título magistral de Primo Levi, judeu italiano sobrevivente de Auschwitz: “Isto é o homem? A resposta inconfundível é: sim. Esta é a natureza humana. Mas não devemos nem podemos conformar-nos com ela.”

CAMPOS Cerca outrora eletrificada em Auschwitz II - Birkenau FOTO SCOTT BARBOUR/GETTY

CAMPOS Cerca outrora eletrificada em Auschwitz II - Birkenau FOTO SCOTT BARBOUR/GETTY

Tudo começa pela propaganda

Não há razão para se estar sossegado. Porque se a história não se repete — os historiadores insistem neste ponto — “as semelhanças entre a Europa de hoje e a dos anos 30 são inegáveis”. Quem o diz é Cláudia Ninhos, investigadora que estuda as relações luso-alemãs nos anos da II Guerra. “Depois do 'Brexit' e da eleição de Trump, já nada é impossível ou improvável. 2017 vai ser um ano decisivo com as eleições em França e na Alemanha e uma vitória da extrema-direita pode ser catastrófica”, vaticina, perplexa com as reviravoltas da História. “Pergunto-me sempre como é possível estarmos novamente a trilhar os mesmos caminhos quando sabemos tudo, ou quase tudo, sobre o nacional-socialismo, sobre as técnicas que o NSDAP [Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães] e Hitler utilizaram para chegar ao poder — e, nunca é demais sublinhar, de forma democrática —, como silenciaram a oposição, e como construíram uma poderosa máquina de propaganda que foi o suporte da sua política antissemita e imperialista.”

Para Cláudia Ninhos, os populismos recorrem abundantemente à presunção de que são apolíticos, e por isso inócuos. “Ora, esta é a ideia que lhes dá força e eficácia. Os seus líderes não se consideram políticos, colocam-se fora do sistema, apresentam-se como indivíduos providenciais e utilizam uma arma importantíssima: a mentira.” Não dizia Goebbels, o ministro da propaganda nazi, que uma mentira, depois de repetida mil vezes, se torna numa verdade? A historiadora exorta as pessoas a lerem o “Mein Kampf” e a descobrirem, nos dois volumes que Hitler escreveu entre 1925 e 1926, as parecenças com os discursos atuais. Como a noção, por exemplo, de que a maioria do povo se deixa guiar menos pela reflexão do que pelo sentimento. Ou a que defende que a propaganda deve estabelecer o seu nível espiritual de acordo com a capacidade de compreensão do mais ignorante de entre os que pretende atingir. “Não acha que Trump aprendeu bem a lição?”, ironiza Cláudia Ninhos.

Aprendizagem não é bem um substantivo que se aplique à Europa dos nossos dias. Basta recordar, como salienta Avraham Milgram, que um fenómeno como a antissemitismo “integra grosso modo a cultura ocidental” e “não acabou com o assassinato de 6 milhões de judeus”. Em muitos lugares, ele “ficou latente e vem à tona quando mudam as circunstâncias económicas, sociais e políticas, sem haver necessariamente conexão ou dependência entre elas e os judeus”. Hoje, o sentimento antissemita está ligado a um sentimento anti-israelita motivado pelo conflito israelo-árabe. “Mas as críticas às políticas dos Governos israelitas, que são legítimas, muitas vezes transformam-se em meios para deslegitimar a própria existência do Estado de Israel, demonizando-o” e assim caindo no antissemitismo.

“Nunca pensei chegar a esta idade e ver a democracia a ser posta em causa de uma forma tão iminente”, confessa Irene Pimentel. Nunca pensou que o relativo comodismo em que todos estamos habituados a viver, que a paz a que estamos acostumados pudessem estar hoje tão ameaçados. Que o primado do negacionismo esteja de novo a chegar — a simples e quase pueril afirmação de que um facto comprovado como a fraca assistência a uma tomada de posse venha ser substituído por um acontecimento “alternativo” e mais conveniente. “É assustador. Eu, que nunca alinhei com o politicamente correto, hoje sou fã incondicional. Porque não acho engraçado que, em nome da 'franqueza' politicamente incorreta se goze com os deficientes ou se diga que alguém, por ter mais melanina, parece um macaco”, diz Irene. É por aqui que se começa. E onde acaba? Bom, não adianta dizer que não fomos avisados. E não há Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto — símbolo da memória de todos os genocídios — que substitua o constante e por vezes doloroso trabalho da consciência.