MUNDO
Guerras nucleares, acidentes, mortes: o que foi e o que podia ter sido este Natal
Ainda falta uma semana para encerrar o negro ano de 2016 (Cohen, etc, Bowie, etc, Prince, etc, George Michael, etc) mas antes disso assistimos a um fim de semana natalício carregado de dramas, avisos e lamentos. Foi o Natal dos temores por Mário Soares e Carrie Fisher e pelas guerras nucleares que podem vir a acontecer — e foi o Natal do adeus ao famoso ensemble Alexandrov do Exército russo e à estrela maior da pop britânica George Michael
TEXTO JOANA AZEVEDO VIANA
Por esta altura, quase dois meses depois de Donald J. Trump ter vencido as presidenciais norte-americanas, o mundo já se habituou à ideia de que, a partir de 20 de janeiro de 2017, os Estados Unidos vão ser liderados por um controverso empresário que continua sem esclarecer como vai enterrar os conflitos de interesse que estão a ensombrar a sua transição — e que continua a recorrer ao Twitter para atiçar países e líderes políticos e para defender as suas visões incendiárias sobre uma série de assuntos. Ainda assim, não deixou de ser com espanto e preocupação que especialistas de todo o mundo receberam a nova ameaça do Presidente eleito norte-americano, que deu o mote a um fim de semana de Natal caótico com um tweet na quinta-feira.
The United States must greatly strengthen and expand its nuclear capability until such time as the world comes to its senses regarding nukes
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) 22 de dezembro de 2016
Nesse dia, Trump incendiou o Twitter ao declarar que “os Estados Unidos devem fortalecer e expandir em larga escala as suas capacidades nucleares até que o mundo ganhe bom senso” sobre o armamento nuclear. Foi, nas palavras do proeminente intelectual Noam Chomsky, “uma das coisas mais assustadoras” a que o mundo assistiu recentemente e o episódio não ficou por aí. No dia seguinte, 23 de dezembro, o Presidente eleito declarou num programa de televisão da MSNBC que estava a referir-se a “uma corrida ao armamento”.
FOTO REUTERS
Jornais houve que foram rápidos a notar uma espécie de marcha-atrás do futuro líder norte-americano, mas tal não se comprovou. Putin, declarou Trump no dia a seguir ao tweet, já lhe garantiu que partilha a vontade de reverter a estratégia mundial de não-proliferação nuclear e, de acordo com o apresentador do programa “Morning Joe”, Mika Brzezinski, o Presidente eleito está investido em “vencê-los a todos e vencê-los em todas as ocasiões”. Vencer quem ninguém sabe ainda, mas o mundo ficou em alvoroço: “É irresponsável e imprudente um Presidente eleito estar a articular as futuras políticas nucleares dos EUA num tweet e num programa de televisão matinal”, declarou ao “The Guardian” Daryl Kimball, diretor-executivo do instituto Arms Control Association. “As palavras bastam para ter efeitos danosos. Invocam confusão e podem gerar hostilidades entre os adversários” dos Estados Unidos, acrescentou o especialista.
Talvez por causa disso, ou nem tanto, foi uma espécie de conflito nuclear que lançou o fim de semana natalício, uma preocupante guerra de palavras entre o Paquistão e Israel — no Twitter, como vem sendo apanágio dos políticos. Preocupante porque teve por base uma notícia falsa como as que, segundo especialistas, estão a tomar conta das redes sociais e do ciberespaço. A coisa estalou a 20 de dezembro, dia em que o alegado portal de notícias AWD News publicou um artigo intitulado “Ministro da Defesa de Israel: Se o Paquistão enviar tropas para o terreno na Síria sob qualquer pretexto, vamos destruir o país com um ataque nuclear”. O ministro paquistanês da Defesa, Khawaja Mohammad Asif, recorreu à rede de microblogging para deixar um aviso aos hebraicos: “O Paquistão também é uma potência nuclear”, lembrou. Avigdor Liberman, homólogo israelita de Asif, responderia no sábado, na mesma plataforma online, que a “notícia” é “totalmente falsa” — uma versão confirmada por organizações de verificação de conteúdos, que segundo vários media apontaram que o próprio site de notícias não é sequer um site de notícias mas um agregador de mentiras.
FOTO GETTY
O que foi verdade é que, para marcar o fim do seu mandato e a passagem de testemunho a um homem que tantos temem, Barack Obama decidiu abster-se na votação de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que condena os colonatos israelitas nos territórios ocupados da Palestina, permitindo que o documento fosse aprovado para exigir o “fim imediato” da construção de casas para colonos na Cisjordânia ocupada. Havia rumores de que os EUA iam assumir essa postura inédita, depois de décadas de apoio incondicional na ONU ao seu grande aliado no Médio Oriente — o que, segundo fonte do Governo hebraico avançou à Reuters a meio da semana, levou membros do Executivo de Benjamin Netanyahu a ligar a Donald Trump para lhe pedirem a sua intervenção pró-Israel. O Presidente eleito ainda conseguiu adiar a votação um dia, mas esta acabaria por avançar na sexta-feira, com o documento a ser aprovado sem vetos nem votos contra e os hebraicos a ficarem irados. O primeiro-ministro israelita não só já garantiu que não vai respeitar o resultado da votação “abominável” como tem estado a convocar embaixadores dos países que votaram a favor dos palestinianos, entre eles os representantes diplomáticos da Nova Zelândia e do Senegal, e a cancelar programas de ajuda externa a alguns desses países (caso do Senegal). Contudo, e como notou a revista “Slate” na consoada, “notavelmente Israel não está a agir contra qualquer dos países mais poderosos que votaram a favor da resolução e que poderiam tê-la bloqueado, entre eles a China e a Rússia”.
A Rússia, essa, teve mais com que se preocupar este Natal após um avião militar modelo Tu-154 se ter despenhado no Mar Negro, ao largo de Sochi, dois minutos depois de ter descolado do aeroporto daquela cidade na manhã de Natal com destino à Síria. A bordo seguiam nove jornalistas, oito soldados, dois funcionários do Ministério da Defesa e oito tripulantes, além de 64 membros da famosa banda de música do Exército russo, o Alexandrov Ensemble, que ia atuar na passagem de ano para as forças russas estacionadas no território sírio. Nada indica que haja sobreviventes e, esta segunda-feira, cerca de 3500 pessoas, entre mergulhadores, soldados e funcionários de equipas de busca e salvamento, continuavam à procura dos corpos das vítimas e dos destroços do avião, apetrechados com navios, caças, helicópteros e submersíveis.
Maestro Valery Khalilov, uma das vítimas do acidente FOTO GETTY
Esta segunda-feira foi dia de luto nacional para os russos, assim declarado por Vladimir Putin, numa altura em que o Presidente russo teria razões para celebrar após os últimos civis e membros da oposição armada a Bashar al-Assad terem abandonado a cidade de Alepo. Foi muito graças ao apoio aéreo russo que o contestado Presidente sírio alcançou esta estrondosa vitória antes do final do ano — recapturando a cidade de importância estratégica que foi reduzida a pó e escombros durante a ofensiva de intensos bombardeamentos iniciada em abril. O número certo de vítimas desta campanha, como da guerra civil que estalou na Síria faz em março seis anos, continua por apurar. A Cruz Vermelha diz que cerca de 35 mil pessoas, na sua maioria civis, foram retiradas do leste de Alepo antes de as forças leais a Assad terem reconquistado totalmente a cidade, cuja parte oriental estava sob controlo da rebelião armada desde 2012. Na prática, a vitória de Assad e Putin vem reduzir a oposição ao líder sírio a um movimento armado provincial e reescrever uma guerra que está prestes a entrar no sétimo ano consecutivo. Será que vai acabar em breve? Para já, e muito por causa da complexidade de forças e interesses no terreno, continua a ser difícil prever.
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O mundanismo fez o Natal refém. É preciso libertá-lo Papa Francisco
Esta guerra não foi esquecida pelo Papa Francisco, que na sua quarta mensagem de Natal desde que foi eleito pediu a paz no Médio Oriente e rezou pelas vítimas da guerra da Síria e de outros conflitos espalhados pelo mundo — que, em 2016, fizeram disparar o número de refugiados e deslocados para um recorde que não era registado desde a II Guerra Mundial. Mas o discurso de Francisco aos fiéis não se ficou por aí, com o Papa a apontar a mira das suas palavras ao materialismo que domina a quadra festiva, também ela sobre uma família de refugiados, como conta a Bíblia. “Jesus nasceu rejeitado por alguns e perante a indiferença de muitos outros. A mesma indiferença pode existir hoje, em que o Natal se tornou uma festa cujos protagonistas somos nós próprios em vez de Jesus; em que as luzes do comércio ocultam a luz de deus nas sombras; em que estamos preocupados com prendas sem nos deixarmos tocar por aqueles que estão marginalizados. Este mundanismo fez o Natal refém. É preciso libertá-lo.”
FOTO REUTERS
Com mais ou menos presentes, mais ou menos materialismo, enquanto famílias de todo o mundo se preparavam para celebrar o Natal, os portugueses souberam que o antigo Presidente Mário Soares voltou para os Cuidados Intensivos em estado crítico e os fãs de Star Wars receberam a notícia de que Carrie Fisher, a eterna Princesa Leia do grande ecrã, foi internada após sofrer um ataque cardíaco. Mário Soares continua em estado grave, Carrie Fisher parece já estar fora de perigo.
Já sentados às mesas natalícias para encerrar a quadra, o negro ano de 2016 ceifou mais uma figura de renome mundial. Depois de David Bowie, Alan Rickman, Prince, Muhammad Ali, Gene Wilder, Leonard Cohen e Fidel Castro, entre tantos outros artistas e personalidades desaparecidos desde janeiro, George Michael sucumbiu a um enfarte do miocárdio no domingo. Do repertório dos Wham, a banda que o lançou para o estrelato, ficam temas eternizados como Last Christmas I Gave You My Heart. O astro da pop britânica tinha apenas 53 anos mas o seu jovem coração não resistiu a este Natal — ou a este ano. E com essa notícia começou a contagem decrescente para o fim de 2016.