MEDICINA

Daniel Sampaio colocou uma vida e toda a carreira num minuto e 23 segundos de silêncio

DESPEDIDA A lição de jubilação de Daniel Sampaio nesta quarta-feira, em Lisboa, encheu o auditório da Faculdade de Medicina

DESPEDIDA A lição de jubilação de Daniel Sampaio nesta quarta-feira, em Lisboa, encheu o auditório da Faculdade de Medicina

A ultima lição do psiquiatra Daniel Sampaio foi uma aula de júbilo. O médico dedicou a carreira a estudar os problemas dos jovens e eles retribuíram, enchendo-lhe o auditório, cantando e vibrando. A plateia estava repleta de nomes ilustres, mas foram os mais novos que fizeram a festa

TEXTO CHRISTIANA MARTINS FOTOS TIAGO MIRANDA

O que faz um homem quando sabe que é o momento de partir? Faz silêncio. Ouve música. Olha para aqueles que ama. A voz treme, os olhos enchem-se de lágrimas. Baixa a cabeça e agradece. Cercado de amigos, colegas, alunos, Daniel Sampaio cruzou as mãos sobre o peito, baixou a cabeça e fixou na retina uma imagem que assumiu ser irrepetível. Mas há momentos que perduram, para lá da fina espessura do tempo. Foram 70 anos encaixados em menos de duas horas de uma aula de jubilação que se transformou numa emocionada festa de despedida.

Nem foi preciso entrar na Faculdade de Medicina de Lisboa para se perceber que aquele era um dia especial. Quinze minutos antes de começar, do lado de fora, era um sem fim de jovens de calças de ganga, médicos de bata e estetoscópio ao pescoço e pessoas vestidas a preceito dirigirem-se para o átrio central do edifício Egas Moniz. Ninguém parecia ter dúvidas, iam uns atrás dos outros, como se todos soubessem que no fim da manhã desta quarta-feira era ao Grande Auditório que todos os caminhos levavam.

Cruzando as portas, o espanto, porque parecia que ali não cabia nem mais um alfinete. As escadas serviram de assento, não importava a idade de quem nelas se sentasse. Na fila da frente, os ilustres convidados: o irmão, Jorge Sampaio, e a mulher, Maria José Rita, Ramalho e Manuela Eanes, Manuel Alegre, ladeados pelo diretor-geral da Saúde, Francisco Georges, o secretário de Estado-adjunto e da Saúde, Fernando Araújo, dois ex-ministros da área, Maria de Belém e António Correia de Campos.

Depois, subindo pela plateia, muitos colegas de profissão, mas, sobretudo, muitos alunos, estudantes de Medicina. Muitos. Na primeira fila lateral, uma pessoa especial e determinante no percurso de Daniel Sampaio: Maria Luísa Guerra, a professora de Filosofia do Secundário que o encaminhou para a Psiquiatria. Noutra fila lateral, a mulher, Maria José. E, numa cadeira de rodas, um amigo, doente mas presente: Ruben de Carvalho, do Partido Comunista Português. Os filhos e os netos mais velhos não faltaram, espalhando-se pelo chão e pelos cantos, como conseguiram.

Arrumar toda aquela audiência não foi fácil e, por isso, a lição começou com dez minutos de atraso. Primeiro falou Fausto Pinto, o diretor da Faculdade de Medicina, sublinhando “o sentido ético e moral e não apenas académico” do acontecimento. Daniel Sampaio ouvia, discreto, contido. À mesa, sobre o palco, além de Carlos Martins, presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar Lisboa Norte — a que pertence o Hospital de Santa Maria, casa do psiquiatra durante 40 anos —, Luís Câmara Pestana, sucessor de Daniel Sampaio como chefe do Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental, António Barbosa, diretor da Clínica Universitária de Psiquiatria e Psicologia Médica, e o presidente da Associação de Estudantes, Rafael Inácio.

Feitas as introduções, chegou a hora de começar a última lição. Daniel Sampaio dirige-se ao centro do palco, apagam-se as luzes e o Professor pede silêncio. Não o silêncio banal numa situação como aquela, mas precisos “um minuto e vinte três segundos de silêncio”. No ecrã aparece um quadro de Marc Chagall e ouve-se o som de um piano. Quando acaba, Daniel Sampaio explica que se tratava do Prelúdio em Lá Maior número 7 de Chostakovitch.

Porquê essa escolha? Porque o compositor tinha problemas de saúde mental, tendo vivido, explica, dividido como muitos de nós pela dúvida sobre até onde podemos ir na nossa criatividade e a necessidade de obedecer. Colocada a questão da liberdade individual, Daniel Sampaio começou a falar de si. Apresentou uma fotografia dos pais, Fernanda e Arnaldo, sorridentes, abraçados. Foram eles, disse, os responsáveis pela “educação do caráter”. Depois, a imagem da avó, Sara, cercada pelos três netos, Jorge, Filipe e um pequeno Daniel, ainda de touca na cabeça. A avó que lhes determinou e previu o futuro: adivinhou que Jorge seria político, Filipe cientista e Daniel psiquiatra. E assim foram.

Nova foto, desta vez Daniel e Maria José, o casal que ainda persiste, seguindo-se “a tribo”: a família toda junta, três filhos, três noras, sete netos. “Os Sampaio”, como assumiu o psiquiatra. Depois, foi a imagem do Liceu Pedro Nunes, o local onde o então estudante aprendeu “a lutar pela liberdade”. Surge a fotografia da professora querida, Maria Luísa Guerra, ao lado das imagens de Jean-Paul Sartre e Albert Camus, as referências da juventude. As fotografias vão-se sucedendo, carregando com elas as fases da vida do Professor: o Hospital de Santa Maria, os mestres de Psiquiatria, uma a um, e os colegas em empreitadas como a criação da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar.

Depois vieram os livros, 27 títulos, mais de 637.000 exemplares publicados, a surpresa de ter sido escolhido para dar nome a uma escola secundária em Almada, os autores com quem partilha o prazer de escrever e conversar: Gonçalo M. Tavares, Mia Couto e Lobo Antunes. Não esquece ainda as passagens pela comunicação social, tenham sido na imprensa, rádio e televisão.

A audiência vai ouvindo, viajando pela mão do psiquiatra ao longo de sete décadas. Uma conversa de memória mas também de alertas para o futuro. “O diretor de serviço (nos hospitais) está esvaziado de poderes por sucessivos e sobrepostos níveis de decisão”, disse Daniel Sampaio, de saída de chefe de serviço de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de Santa Maria. É então o momento de falar do futuro e, como em outros momentos da sua carreira, escolheu um tema tabu na sociedade portuguesa: decidiu deixar um contributo para ajudar os jovens que se automutilam, ou como ele prefere dizer, têm comportamentos auto lesivos.

Recordou que os últimos dados apontam para que 22,9% da população portuguesa tenha uma perturbação mental e que, destes, apenas 1,5% têm acesso aos serviços médicos necessários e apenas 0,3% se forem crianças e adolescentes. Avisou que é preciso prevenir a situação com a criação de gabinetes de apoio nas escolas, lutando contra o estigma associado à doença mental, identificando os jovens em risco, com recurso a outros adolescentes que deveriam receber formação específica para ajudar na identificação dos colegas com problemas. Sem esquecer a necessidade de dar suporte aos pais e utilizar as novas tecnologias.

Feito o balanço da carreira, Daniel Sampaio estampa na parede um quadro de Kandinsky e diz que não se considera “um círculo negro”, como o que se vê na imagem, cercado de cores, mas garante querer que a partir dele “surjam pessoas que façam mais e melhor” do que ele. A voz começa a faltar e, para acabar, vai buscar a origem não dele, mas do próprio país, deixando a frase de D. Henrique, pai de D. Afonso Henrique, o fundador de Portugal: “Guarda do meu coração algum tanto.” A audiência coloca-se de pé e as palmas entram em cena. Ele sai, devagarinho, de cabeça baixa e mãos sobre o peito. Um homem idoso e visivelmente emocionado levanta-se na plateia. Já não é o ex-Presidente da República, mas apenas o irmão mais velho, derretido em lágrimas. Os irmãos Daniel e Jorge ficam um longo minuto abraçados.

Ainda falta falar o secretário de Estado da Saúde, que vai buscar à última entrevista do psiquiatra ao Expresso a partilha de emoções fortes, como a relação com os netos e que não deixa de pedir a Daniel Sampaio que continue a contribuir com o Serviço Nacional de Saúde. De repente, quando já nada parecia caber no auditório, entram jovens, vestidos de negro e com instrumentos musicais pela mão. Tocam Zeca Afonso e pedem que “venham mais cinco”. As cabeças de toda uma geração de amigos balançam-se discretamente. Afinal, dizer adeus nunca é fácil, mas até pode ser tocante.