O regime sobrevive ao fim dos “direitos adquiridos”?
Foi uma das razões que levou à saída de Barreto, Pulido Valente e Francisco Sousa Tavares do PS: a total ausência de realismo financeiro da esquerda, em geral, do PS em particular. Como vimos durante o guterrismo e o socratismo, o PS deu razão aos dissidentes. Este irrealismo estava assente num equívoco lógico e até moral: “os direitos adquiridos”.
A narrativa dos direitos adquiridos faz uma equivalência falaciosa entre “direitos económicos” e “direitos cívicos”. Como é evidente, a liberdade religiosa, política e discursiva não pode ser colocada no cesto onde estão a automática progressão de carreiras ou a (alegada) intocabilidade das pensões. A liberdade de expressão e de associação não dependem de qualquer realidade material; estão consagradas na Constituição, são primados morais que existem esteja o país em recessão ou em crescimento, esteja o país com pujança demográfica ou num inverno demográfico, tenha o país uma dívida grande ou pequena. O mesmo não se passa com os chamados “direitos sociais” ou “direitos adquiridos”. Ao contrário dos direitos cívicos, um “direito adquirido” como o automático aumento salarial de uma classe profissional não pode ser colocado na ordem do imperativo categórico, porque depende de fatores materiais e financeiros. Ao depender de fatores exteriores à Constituição (movimentos demográficos, oscilações económicas), o “direito adquirido” (isto é, dinheiro) não é um direito, é um ato ordinário de governação, que pode ou não ser concretizado.
O regime foi construído na sacralização dos “direitos adquiridos” como princípio constitucional. Como se viu, aliás, na guerra entre o Tribunal Constitucional (TC) e Passos. Sucede que Centeno é tão ou mais anti-TC do que Passos e Gaspar. Em que ficamos?
Como explicou Centeno, o aumento salarial dos professores coloca em risco o esforço de todos os portugueses. É um esforço financeiro demasiado forte neste contexto: dívida alta, compromissos europeus. Ou seja, o discurso de Centeno está na linha do último discurso de Teixeira dos Santos (no dia da queda de Sócrates no Parlamento): o PS e a esquerda têm de se reconciliar com a realidade. Agora sobram duas questões. A geringonça dificilmente sobrevive ao desmantelamento da falácia dos “direitos adquiridos”. PCP, BE e parte do PS não aceitarão a queda do véu. Mas a pergunta central vai além da geringonça. O regime foi construído na sacralização dos “direitos adquiridos” como princípio constitucional. Como se viu, aliás, na guerra entre o Tribunal Constitucional (TC) e Passos. Sucede que Centeno é tão ou mais anti-TC do que Passos e Gaspar. Em que ficamos?