Henrique Raposo

A tempo e a desmodo

Henrique Raposo

Cães e vacinas: o mesmo problema

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Não, não é uma pessoa Foto getty

Não, não é uma pessoa Foto getty

Não estava em Matosinhos, mas a cena do ataque do cão à criança não me é estranha. O dono passeia um rottweiler sem trela e açaime num passeio cheio de adultos e crianças. Na sua cabeça, não está a cometer uma infração, não está a criar uma bolha de medo à sua volta, está apenas a gozar a sua liberdade. É um pouco como os pais que não vacinam as crianças: eles não pensam que estão a pôr em causa a vida alheia, acham que estão apenas a seguir um “estilo de vida alternativo”; os outros são um mero cenário. No caso do dono do cão, o “estilo de vida alternativo” é reforçado pela absurda humanização do animal. Ele sente-se ofendido quando as pessoas exigem trela e açaime no animal, porque vê o cão como uma criança. Em situações semelhantes, já ouvi respostas como “você não põe trela na sua filha, pois não?”. Perante este tipo de comentário, que mostra como as caixas de comentário estão a colonizar a vida real, não se pode ter um diálogo civilizado. Tal como não é possível ter um diálogo civilizado com pessoas que veem nas vacinas uma conspiração à “Ficheiros Secretos”. Ora, as leis, as proibições e as obrigatoriedades existem precisamente para resolver estes becos sem saída.

Já todos percebemos que certas raças de cães são mesmo perigosas, já percebemos que não chega impor a obrigatoriedade de trela e açaime. Os ataques continuam, devido à tal humanização dos bichos. E a questão é que o ar do tempo está com estas pessoas. Das televisões até aos cafés, aquilo que se vê e ouve vai no sentido da equiparação do cão ao homem. A par do “você não põe trela na sua filha”, há uma série de respostas e reações que oiço e vejo com frequência. A mais reveladora surge quando os donos dos cães até ficam ofendidos quando veem a reação de medo das crianças. Franzem os olhos, põem um ar austero e dizem “os meus meninos não fazem mal”, “então estás com medo dos meus meninos, que disparate”. Nesta atmosfera, estes donos veem no açaime uma espécie de violação dos direitos humanos e encaram a proibição de certas raças como uma violação das liberdades e garantias. Mas onde então as liberdades e garantias das crianças que, nas grandes cidades, têm de competir com os cães por todos os espaços verdes?

Estes donos veem no açaime uma espécie de violação dos direitos humanos e encaram a proibição de certas raças como uma violação das liberdades e garantias

Voltamos assim às semelhanças com o caso das vacinas: o fantasma do “fascismo” ou do “autoritarismo” levou as autoridades a terem medo de impor a sua legítima autoridade em nome da liberdade e segurança de todos; não querem voltar a impor a obrigatoriedade das vacinas com medo de limitar liberdades e estilos de vida (como se estivéssemos no campo da opinião, e não no campo dos factos); da mesma forma, não querem proibir as raças de cães perigosos, porque se instalou a ideia de que a “opinião” e o “estilo de vida alternativo” têm vantagem sobre o bem comum, a começar no mais elementar dos direitos: andar pelas ruas em segurança.