Quénia
O escândalo do procurador que arranjou uma “saída honrosa” para o Presidente queniano... que agora volta às urnas
Foto Getty
Em 2010, o Tribunal Penal Internacional investigou seis quenianos, incluindo o atual chefe de Estado, Uhuru Kenyatta, por crimes contra a humanidade alegadamente cometidos em 2007. Seis anos depois, todo o caso entrou em colapso. Após deixar Haia, o ex-procurador-chefe do tribunal Luis Moreno Ocampo trabalhou nos bastidores para oferecer “uma saída honrosa” ao Presidente queniano, que esta quinta-feira tenta ser reeleito, em eleições muito contestadas
Texto Stéphanie Maupas Mediapart (rede EIC)
Esta quinta-feira, 26 de outubro, os quenianos voltam às urnas para escolher o sucessor do Presidente Uhuru Kenyatta. O seu opositor histórico, Raila Odinga, anunciou recentemente que abandonava a corrida presidencial. O ambiente é tenso. A vitória de Kenyatta nas presidenciais do início de agosto foi invalidada pelo Supremo Tribunal, na sequência de uma queixa do partido de Odinga.
Uhuru Kenyatta em campanha, em julho passado Foto Getty
A oposição organizou manifestações em Nairobi, reprimidas pela polícia. Todos sustêm a respiração, recordando as tragédias que se seguiram às eleições presidenciais de dezembro de 2007 e resultaram em pelo menos 1.100 mortos, 350 feridos e 350.000 deslocados. Esta violência levara o Tribunal Penal Internacional (TPI) a abrir uma investigação.
Em dezembro de 2010, o procurador-principal do TPI, Luis Moreno Ocampo, indicara os nomes de seis suspeitos, três de cada lado. Muito rapidamente, o magistrado torna-se uma figura célebre no Quénia. Tem mesmo o seu boneco no XYZ, um programa de televisão satírico. Um ano depois, quatro dos seis suspeitos são indiciados - os outros dois casos, considerados muito fracos pelos juízes de Haia, ficam de fora. Apesar de o TPI o acusar de crimes contra a humanidade, Uhuru Kenyatta decide formar com um ex-oponente, William Ruto, também indiciado, uma candidatura à eleição presidencial seguinte, em 2013. O movimento Aliança do Jubileu une os apoiantes dos dois principais grupos étnicos do país, os kikuyu e os kalenjin. Uma receita vencedora.
Raila Odinga durante uma entrevista, há um mês Foto Reuters
Raila Odinga, rival de Kenyatta, aproveita a oportunidade para gozar com o futuro Presidente: se ele ganhar, terá de administrar o país via Skype a partir do banco dos réus em Haia. Favorito nas sondagens, Kenyatta apresenta-se como defensor da independência do país, uma posição facilitada pelo ativismo diplomático em torno da eleição.
Com efeito, o poder ocidental tem assumido a causa do seu rival, como confirma um relatório do Quai d'Orsay de junho de 2012 que é um dos documentos obtidos pela Mediapart e analisado em conjunto com a European Investigative Collaborations (EIC). “Kofi Annan chamou a atenção do Ministro [Laurent Fabius] para a situação no Quénia” sobre as eleições de 2013, segundo este documento.
Uma vez que alguns candidatos são acusados pelo Tribunal, o negociador de paz na crise pós-eleitoral de 2007/2008 teme a violência. Aconselha "transmitir mensagens claras sobre o facto de que figuras públicas sob acusação podem finalmente ser presas e transferidas" para Haia. Ao regressar de Nairobi, um representante do Ministério dos Negócios Estrangeiros da França confirmou que "são realmente as mensagens passadas aos quenianos, tanto pela França como pela UE em geral". Esse apoio ocidental ao oponente do Kenyatta, reiterado em dezembro de 2012, será totalmente contraproducente.
No TPI, o procurador-chefe deve apresentar o seu relatório preliminar sobre o julgamento conjunto de Kenyatta e do seu co-réu, agendado para 15 de abril de 2013. Mas "P0014", a principal testemunha direta no caso contra Francis Muthaura, ex-secretário de gabinete da Presidência, é considerado não fiável pelos principais procuradores no caso. Eles defendem a retirada das acusações, mas a nova procuradora-chefe, Fatou Bensouda, hesita.
A procuradora-chefe Fatou Bensouda Foto Getty
Luis Moreno Ocampo decide intervir. Saiu do tribunal em junho de 2012, após nove anos no cargo, mas mantém os seus aliados em Haia. Um dos advogados no gabinete do Procurador, que se tornou depois seu assessor pessoal, informa-o sobre as complicações do caso. Então o ex-procurador, que agora trabalha para um escritório de advocacia em Nova Iorque e ensina em Harvard, contacta Sara Criscitelli, uma ex-funcionária do Departamento de Justiça dos EUA que foi contratada para o TPI.
Foto Getty
Como se ainda fosse o procurador-chefe, Ocampo aconselha-a a manter aberto o caso, a fim de denunciar a falta de cooperação do Quénia e solicitar um adiamento. "Culpe-os antes de eles culparem o promotor", disse ele. "Precisamos de defender o gabinete do procurador. Se eles se pronunciarem antes de nós no sentido de arquivar o caso por falta de provas, ficaremos muito mal vistos”. A imagem do TPI já tinha sido afetada poucas semanas antes, quando um membro de uma milícia congolesa foi absolvido por falta de provas.
A americana está preocupada. "Se dissermos algo que sugira que um Estado pode derrotar o tribunal, simplesmente recusando-se a colaborar, será a morte do tribunal como um todo", escreve ela. Mas Ocampo, acima de tudo, quer salvar a sua reputação. Foi ele que personalizou em excesso o caso do Quénia. Também conduziu uma investigação amadora, como todas as efetuadas durante o seu mandato.
No final de fevereiro, Bensouda entra em contacto com Ocampo para discutir o assunto "antes de tomar uma decisão". Questionado pela Mediapart, o seu chefe de gabinete diz que "a procuradora Bensouda não procurou o conselho do ex-procurador sobre nenhum desses assuntos". Segundo a nossa informação, porém, ela referiu-se ao caso pelo menos duas vezes em contactos com o seu antecessor.
Em 11 de março, Fatou Bensouda retira as acusações contra Francis Muthaura. A 4 de março de 2013, os réus Kenyatta e Ruto são eleitos. O novo Presidente começa a atacar o TPI em várias frentes. Inicia uma contra-investigação, pressiona a União Africana, e em novembro de 2013 solicita ao Conselho de Segurança das Nações Unidas que peça ao TPI para suspender os dois casos. Entram em jogo acusações de neocolonialismo, bem como o imperativo de não alienar o Quénia, um aliado chave na luta contra grupo terrorista Al Shabab na Somália.
Em Haia, na Assembleia de Estados Partes do TPI, discute-se uma estratégia para retirar as acusações contra Kenyatta por falta de provas, com base na falta de cooperação de Nairobi. O Chefe de Estado ver-se-ia assim livre do Tribunal, que não ficaria completamente manchado. Ocampo já estava a trabalhar nessa estratégia. Em setembro de 2013, explica a um interlocutor do escritório de advocacia de Nova Iorque Shearman & Sterling que está a falar com Fatou Bensouda "para organizar um grupo externo de destacados advogados para examinar as provas no caso de Kenyatta. Não acho que se possa acusar um chefe de Estado com argumentos fracos".
Ele escreve novamente a Sara Criscitelli. "Várias pessoas disseram-me que as provas desapareceram. Testemunhas recuaram nos seus depoimentos ou negaram-se a aparecer. Compreendo o ambiente político difícil, mas quando não há provas o procurador não vai a tribunal ". E acrescenta: "Para ajudar na decisão, achei que seria boa ideia nomear um painel externo de revisores". A americana diz-lhe que já tinha colocado essa questão e não devia ser um problema. Mas na altura em que os dois falam ela já tinha deixado o TPI há seis meses.
O vice-Presidente William Ruto Foto Reuters
Os processos contra Kenyatta e Ruto vinham continuando a enfraquecer com o tempo. Testemunhas foram eliminadas ou intimidadas, outras são corruptas. Três dias depois, o ex-procurador do TPI contacta Kofi Annan. "Acho que é tempo de encontrar uma saída honrosa para Kenyata (sic)", diz ao negociador de paz, numa incrível inversão de perspetiva. Com um cinismo confuso, aconselha-o a enviar alguém ao TPI por alguns dias - "um africano, não um advogado" - para se encontrar com a procuradora e a sua adjunta, os juízes e o presidente. "O seu enviado pode limitar-se a perguntar: há uma solução legal para Kenyatta antes do julgamento?”, diz, especificando que não se devia dar a impressão de que o chefe de Estado do Quénia "estava a escapar à justiça”. Kofi Annan é lacónico: "Estamos realmente a viver tempos interessantes", diz, antes de advogar "vamos esperar e ver".
Marcado para 12 de novembro de 2013, o julgamento de Kenyatta é novamente adiado a pedido da acusação, por falta de provas sólidas. Para Ocampo, é uma oportunidade para continuar as suas manobras. Em Nova Iorque, discute estratégias de saída com Macharia Kamau, diplomata queniana das Nações Unidas. Pela sua parte, a procuradora-chefe do TPI sabe que o processo que herdou de Ocampo é bastante fraco. Há um novo adiamento, e em dezembro de 2014, convocada pelos juízes, a procuradora finalmente desiste. Retira as acusações contra Kenyatta, o qual proclama vitória e promete livrar o seu parceiro de candidatura, cujo julgamento começou em setembro de 2013. Em abril de 2016, o julgamento de William Ruto e do seu coacusado, Joshua Sang, um apresentador de rádio, também é encerrado antes do veredicto final. O "Ocampo-seis", como a imprensa queniana chama ao caso, fica reduzido a nada.