CRIME

A realidade continua a ser mais surpreendente que a ficção

Foto Reuters

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O misterioso assassinato da jornalista Kim Wall

Texto Luís M. Faria

Uma jovem jornalista sueca vai a Copenhaga fazer uma peça sobre um excêntrico inventor dinamarquês que constrói submarinos e foguetões. No dia 10 de agosto, ao fim da tarde, embarca com ele num dos seus submarinos, o Nautilus, com 18 metros de comprimento e 40 toneladas. Horas depois, a meio da noite, quando a jornalista não aparece nem contacta, o seu namorado alerta as autoridades. Tem início uma busca. Um barco que participa nela avista o submarino com o inventor a bordo. Ao vê-los, o homem desce para dentro. Quando reaparece, o submarino já está com água lá dentro e a afundar-se. O homem salta para a água e nada até um bote que o leva até ao barco. Embora ele não admita, toda a gente percebe que afundou o engenho de propósito.

Kim Wall FOTO TOM WALL / TT NEWS AGENCY / REUTERS

Kim Wall FOTO TOM WALL / TT NEWS AGENCY / REUTERS

O Nautilus é depois extraído do mar e examinado. Da jornalista, nem sinal. O homem diz que a deixou numa ilha pelo caminho, mas a explicação não faz sentido. Na ilha em questão ninguém viu a jovem (há câmaras por todo o lado) e só existe uma outra ilha ali, ainda mais improvável. A polícia suspeita e o homem fica em prisão preventiva. Interrogado, ao fim de uns dias muda a sua história. Afinal tinha havido um acidente a bordo. A jornalista morrera e ele sepultara-a no mar.

A segunda versão não parece mais plausível do que a primeira e o inventor continua preso. No tribunal, apenas diz aos repórteres que tem algo para contar mais tarde e que gostava de se exprimir. Mas durante a subsequente audiência à porta fechada (para proteger a família da jornalista) não terá dado pormenores sobre o alegado acidente, nem sobre o local onde teria largado o cadáver. O mistério permanece e há há quem comece a compará-lo a desaparecimentos famosos como o de Madeleine McCann.

As buscas prosseguem, sem resultado. Dez dias depois do desaparecimento, um torso humano dá à costa numa praia. Pensa-se logo que é a jovem desaparecida, mas as autoridades recomendam cautela. Testes depressa confirmam. O ADN do torso é o mesmo encontrado em escovas de dentes e do cabelo que pertenciam à jornalista - e em sangue humano detetado a bordo do Nautilus. O inventor, que estava detido sob suspeita de homicídio negligente, passa a enfrentar uma possível acusação de homicídio, com pena de cadeia que pode chegar às dezenas de anos.

Operações de busca FOTO REUTERS

Operações de busca FOTO REUTERS

Uma jornalista corajosa

Estes são os factos básicos de uma história que parece o argumento de um daqueles romances policiais nórdicos tão populares hoje em dia. Para tornar ainda mais negra a história só falta dizer que o torso tinha perfurações, supostamente para que o gás saísse e não o fizesse flutuar - o mesmo objetivo que justificaria as peças de metal pegadas ao torso.

A jornalista, Kim Wall, tinha 30 anos e era uma estrela da sua profissão. Formada na Sorbonne e na London School of Economics, com um mestrado em jornalismo na Universidade de Columbia (NY), onde foi a melhor aluna da sua turma, publicava como freelancer nalguns dos mais prestigiados órgãos de comunicação mundiais, incluindo o “New York Times”, o “Guardian” e o “South China Morning Post”. Autora de reportagens premiadas sobre testes nucleares e alterações climáticas, também se ocupava com frequência de temas sociais.

A sua mãe disse que “ela deu voz aos fracos, aos vulneráveis e aos marginalizados” e uma colega dela falou do hábito que o mundo tem de “abater mulheres que são espertas, divertidas e corajosas”. “Tem o hábito de estrangular as vozes que se atrevem a falar, de humilhar as mulheres que deixam as suas zonas de conforto, de esmagar aquelas que quebram as regras.”

Para o inventor, que tem 46 anos e se chama Peter Madsen, as coisas não estão boas. Há muito que é uma figura conhecida e estimada na Dinamarca. Desde a adolescência que vive fascinado por rockets e submarinos e, sem ter sequer o curso de engenharia terminado, conseguiu construir vários destes últimos ao longo dos anos, com a ajuda de voluntários e recorrendo ao crowdfunding. Mas embora reconhecendo o seu talento - é mestre a arranjar soluções simples para problemas complexos, imitadas mesmo por engenheiros profissionais - antigos colaboradores são unânimes a descrevê-lo como uma pessoa conflituosa, incapaz de manter uma relação de trabalho com alguém durante muito tempo.

Foto EPA

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Maluco mas não assassino?

Um biógrafo do inventor, Thomas Djursing, lembra uma série inumerável de desavenças envolvendo Madsen e conclui: “Nestes últimos anos tem sido guiado por uma espécie de vingança - para mostrar às pessoas com quem trabalhou no passado, mas que desde então se tornaram adversários, que os pode vencer”. Diz que Madsen, que quer sempre fazer tudo à sua maneira, tem raiva “contra Deus e contra toda a gente”.

Djursing ressalva que Madsen, pese o seu temperamento difícil, não tem histórias de violência no passado. O fotógrafo Bo Tornvig diz que ele é maluco mas não o vê como assassino. “Nunca o vi pôr a mão em ninguém. Esta história cheira mal”, diz. Uma ideia sublinhada por outras pessoas que lidaram com Madsen no passado. Por exemplo, Jens Falkenberg, outro membro da comunidade de construtores amadores de submarinos, que garante: “Peter é uma personalidade colorida, mas de modo nenhum maligna, e não acredito que haja nele algo de violento”. Falkenberg diz que mais facilmente imagina um acidente a bordo do Nautilus. “O submarino é um lugar desconfortável e movemo-nos com dificuldade. Talvez ela tenha caído e partido o pescoço”.

Certo é que se Madsen for de facto um assassino, há elementos no seu passado que podem ajudar a explicar a sua instabilidade emocional. Foi criado por um pai já idoso que tinha uma obsessão por coisas militares. Nesse aspeto o filho imitou-o, pois anda normalmente vestido com roupas militares. Mas Madsen disse um dia que ter um pai como o dele era como ser filho do comandante de um campo de concentração...

Esta quinta-feira à tarde corriam notícias de que a procuradoria dinamarquesa estaria prestes a acusar formalmente Madsen de homicídio.